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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O que eu quero.

Para longe de mim
Tais terços e rosários e credos...
Não quero versículos
Em meu útero.

Dentro de mim,
somente amor e liberdade.

Clarissa D. Melo

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

domingo, 1 de setembro de 2013

Medo de mim.

Você supõe o que eu passo,
O que eu penso
E o que eu faço...

Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...

Dos passos gelados que passeiam de madrugada por cima da cama gelada sem forro sem mágoas com lágrimas de nós que não existimos à sós. De que tens medo se eu me perco me atrevo e no desassossego eu não volto jamais....?!

Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...

Me diga afinal o que te aflige o que te faz mal o que te faz incoerente inconsequente ser vivente em sua mente me faz morrer...

Você supõe o que eu passo,
O que eu penso
E o que eu faço...

Mas não diz jamais sobre janelas que se abrem que são delas.. Delas que já se foram e que também não voltam atrás... Tu reclamas de solidão mas em seu coração o que existe é fato é rastro é um sem-fim de coisas.

Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...

Mas a verdade é que tens medo
Dos-meus-passos.

Clarissa Damasceno Melo


sábado, 31 de agosto de 2013

Em um pedido, me movo.

Como é triste a fome dos homens!
A fome que mata e congela
Que desumaniza e absorve
Que dilacera e destroi...

Meu pai, se fores abrir a janela
Para ver o mundo ou a calçada
Ponha, na altura dos teus olhos,
A esperança que inda nutres no peito.

A pequena esperança que nutristes
Quando, em concha, pusestes tuas mãos
Para receber nosso Cristo, Teu Corpo e Teu Sangue.

A mesma esperança deposites defronte teus olhos, pai
Para não sofrer de lacrimação assim que vires
Uma criança cortada ao meio, em choro, por fome e miséria.

Não tenteis, meu pai, salvar o mundo
Não se salva assim, tão de repente, algo tão perdido...
O mundo perdeu-se, meu pai, foi-se embora, voou daqui.
Tenteis, em seu lugar, mudar teus passos.

Mas não como quem muda de esquina, de rua ou praça
Tenteis mudar o mundo como se fosses arrancar - de um buraco,
Todas as vidas dos homens, todos os olhos desses homens,
Todos os mundos desses homens.

E reconstruirias, pai, pedra a pedra,
um novo mundo.

Livre dos imperialistas, dos falsos e dos inconsequentes,
Livrarias o mundo inteiro dos falsos profetas
E da fome, da seca, da cerca
Do medo, do luxo, dos barões
Dos grandes e miseráveis barões.

Quão dolorida é a voz do homem
Que com seus braços de aço
Ergue muros contra seu povo!

Os hematomas, as jaulas, as mentiras e a tortura...
Ao latifúndio equiparam-se,
Sobre as terras, não me movo, não me calo,
Eu me espalho e me rebelo.

Meu pai, faz de mim olhos, faz de mim nervos, faz de mim coragem
Ponha-me de frente aos homens ferozes,
De frente aos roedores, aos exploradores,
Aos desprezíveis...

Faz de mim, pai, a surra mundial
A surra que destruirá aqueles que militam contra o povo.

Faz, pai
Faz.

Clarissa D. Melo

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Em protesto, não nasço.

- Mas concorde comigo: assim que nasces, tu cerras o pulso em protesto.
- Protesto a quê?
- Nascer.

Clarissa D Melo

Sobre censura.

Eles gritam: surras vazias.

No meio da fumaça
Dos cartazes, das gargantas:
Um brilho vermelho.

Mas olha que ironia:
Para provocar a alergia
Moisés empunhou um cajado
E por todo lado,
O mar vermelho se espalhou.

Tirem-me dessa tirania
A verdade está no ar:
Concorde que é covardia

Esse grito que me impede de gritar.

Clarissa D Melo 

Verbiagem.

À você, um verbo:
Passar.

Clarissa D Melo

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

- O que aconteceu, Clarissa?
- A inspiração... A inspiração está de férias. 

CAMPANHA PELA LIBERDADE


Será preciso que se comece a saber: embora seja eu a escrever, o mesmo eu não sou. Se possível, perceba: dentro de cada um existem dois; e como dois, plural. E por essa indiscutível fatalidade, indago: não lhe assusta serdes mais de um? O confuso e o sereno, o vivo e o cadáver, o feio e o belo... todos estes sendo você? 
Não lhe assusta a fatalidade doentia que lhe põe a ser mal mesmo quando és bom? Quase me despedaço ao perceber que posso livrar apenas uma criança do sentimento inesgotável de fome e miséria, mas não todas. Essa omissão não lhe fere o caráter? Quem pode ser você quando um tiro leva a vida de alguém? Nas horas de horror, eu sou o revólver. 
Pois quem seria eu? As mãos que apertam o gatilho? Ou as que repousam dedos sobre o rosto já escasso de sangue? Minhas próprias mãos se omitem da escolha assim que percebem que viver é escolher. Elas escolhem o plural. Aquele estado de gosto que une o sim, o não e o porvir. 
Vais entender, espero, que não é você a desferir um golpe mortal na cabeça de alguém. Mas tenho que dizer, ainda que áspera, que quando a casa de alguém é invadida no Morro por um policial corrupto, você está em sua casa sendo... você. Embora você esteja em sua casa, quando um policial aponta a arma para a cabeça de alguém, também é tua a mão que atira. 
A mão também é tua por que você se ausenta. Enquanto o mundo de muitos se transforma em sangue, poeira e escuridão; suas mãos preparam o seu café. E se eu digo que tuas mãos são as mesmas a atirar, eu digo, em conjunto, com o meu segundo-eu, que a cabeça a explodir também é tua. 
E se todo mundo, além de um, são dois, eu não consigo entender a calmaria nos grandes centros enquanto o sangue do povo escorre cada ladeira dos Morros. Não entendo por que continuar assistindo à novelas das duas, seis, oito e o escambal de horas, se elas não dizem aquilo que precisa ser gritado. Não entendo por que assistir ao Jornal Nacional se ele não vai apontar o dedo para os policiais assassinos. Eles apontam o dedo para quem não tem por onde gritar. 
Então eu grito: Eu quero uma polícia que me defenda! Que defenda o povo! E não que o extermine! Eu quero uma política sincera que converse com as massas! Eu quero poder ir às ruas sem precisar sofrer com a imagem de pessoas deitadas em papelão! EU QUERO A LIBERDADE DE MEU POVO! É pedir muito? 
Quando eu entro no ônibus para ir para a UESC, eu vejo, pela janela, dezenas de pessoas deitadas nas ruas. Eu penso: Deus, por que eu estou indo a uma universidade e estas pessoas não? Eu penso, com todo o coração, o que me faz melhor. Não sou melhor. Eu tive sorte
Quando você se revolta com tudo aquilo que lhe faz menor, que lhe oprime; o mesmo Sistema excludente e opressor lhe chama de vândalo. Os jornalões lhe preparam uma sopa de mentiras e você a bebe calado. Onde mora a liberdade em um Sistema que lhe engana, estupra e mata sem que você perceba? 
Bruno Torres, Andresa e Nicolas foram presos por protestarem contra isso tudo. E por terem ido contra todos os interesses dos grandes barões - dos grandes e miseráveis barões, continuam presos nas amarras da injustiça. Até onde seremos censurados por nadar contra a maré? Eu tenho medo do silêncio daqueles que sabem de tudo isso e se mantêm calados. Eu tenho medo que tudo isso continue massacrando aqueles que possuem ideias. E, sobretudo, eu tenho medo que a injustiça continue a criar suas filhas para que nos prendam quando estivermos tentando mudar o mundo para todos nós.

CLARISSA DAMASCENO MELO

PARA AJUDAR:



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Fim.

Como em coisa transformada,
lançou-se sobre as águas;
minutos depois,
nem coisa, nem ele:
a morte.

Clarissa D Melo

Definição.



*
- Amor é quando você está disposto a morrer por alguém?
- Não. Amor é quando você está disposto a viver por alguém.

Clarissa D Melo


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Casa-Grande (Capítulo II)

A Casa Grande era uma propriedade extensa. O chão, forrado de madeira, possuía som próprio, e era som de unha que arranha; som fino, para temperar de terror as cabeças dos que se faziam pisar e repisar. Mainha chegou a ver, perdidas entre as muitas paredes, algumas sombras que ela jamais soube explicar de onde vieram. Talvez fossem outros narradores a espiar a estória passando, ou fossem os próprios personagens dessa estória se valendo do futuro para voltar ao passado e reviver tais anos de desilusão.
Dona Sinhá era linda como o amanhecer. Casara jovem e sem amor. O amor foi se edificando, com o passar dos anos, entre as paredes e as sombras. Embora fosse amor fabricado, inda era amor e amor dos fortes - ainda que a fortaleza seja relativa, e o relativo uma certeza. Já o Sinhô, homem forte cuja bravura verás em braço, era de um silêncio que feria. No entanto, era dono de olhos que diziam aquilo que ele nunca precisou dizer. Seu cansaço por estar onde e como estava era estampado no escorrimento que saía de seus olhos azuis. Amara a mulher, mas era amor menor, de contrato e conveniência. Desse amor se valeu a vida, obscura de silêncios que tu não ouvirá.
Quando compraram Mainha, negra forte e áspera, compraram, também, uma negra menor. Mainha tinha braços largos e era vinte e poucos anos mais velha que a outra; era ser pensante, embora se fizesse objeto por obrigação e ódio próprio. Inda lembrava-se de sua finada mãe, igualmente forte, tirada de um arredor africano que ela mesma não sabia onde ficava. Sem saber de histórias e suas origens, cresceu amarrada nos bordados da saia dela, que morreu de chicote forte no lombo.
A negra menor conhecera Mainha depois que chegara à antiga casa que serviam.  Sendo mais nova, não conhecera sua mãe, nem por onde andava. Só sabia que andara de casa em casa, servindo de si mesma para crescer e aprender o mundo do jeito que lhe era menos doloroso. Cresceu vendo o sangue de sua gente escorrer ladeiras. Era sua história sendo extinta sem se entender em seus olhos, que choravam de desaprovação a cada gota vermelha que caía nos pés daqueles que também a eram.
Fez promessa forte pros caboclos mortos. Jurou fidelidade a si mesma: seria, um dia, sinhá para bater em moça branca. Todo seu ódio e fúria traduzir-se-iam em pancadas de veneno agreste. Um dia amarraria, ao tronco, mãos delicadas de moças claras e, a gritarem, morreriam de dor. Sentiriam, tais quais negras, a dor de unhas invadirem as carnes. Tais quais negras, gritariam. Tais quais negras, morreriam. 
Foram, ela e Mainha, escolhidas pelo Sinhô para trabalhos dentro da Casa Grande. Logo, reunidas em amizade que nasce de precisão, uma gostou da outra e, a outra, fez da uma objeto de conversas infindáveis. Atravessavam noite, no porão, a conversarem como deveria ser o lugar que era naturalmente seu e, se em algum dia, perder-se-iam em liberdade doce. Depois, com o clarear do dia, colocavam-se a fazer as tarefas de escravas.
Dona Sinhá pouco entrava na cozinha. Somente para fazer as ordens e as humilhações, entrava de quando em vez; pisava por uns cantos, derrubava umas louças finas, ou por sem querer, ou por descaração própria, para que as negras viessem limpar tudo outra vez. Era mulher magra, mas seu rosto, sempre levantado, fazia dela bicho que não se encosta. Reclamava da louça, da mesa, dos serviços. Era, por se dizer, escrava de si mesma que, entediada, ia se divertir com a criadagem.
- Diga-me, querido – Disse ela encostada à cabeceira da cama, certo dia, enquanto via seu marido se arrumar para deitar ao seu lado – Sente saudades dos tempos antigos?
Interrogativo, Sinhô olhou-a emburrado, como sempre fora, e, a olhar-lhe nos olhos, respondeu:
- Que pergunta inútil é essa?
- Só pergunto por querer saber.
- Não pergunte. Vá dormir, que eu também tenho que fazer.
- Fazer por quê?
Perdendo a paciência, jogou-se no travesseiro e deitou-se do lado oposto, para não encarar a mulher. E disse:

- Vosmicê, por favor, esqueça que aqui estou. Se quiseres prosear inutilidade, ou pegue espelho e se veja nele ou faz favor de amanhã descer a Rampa para procurar amiga besta. Eu não sou amiga besta.  – E caiu em sono profundo que só acabou no dia seguinte.

Clarissa Damasceno Melo

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Parte um da parte única.

Ela disse:
- Você tem essa mania besta de não me responder!
Calmo, respondeu:
- E você, essa mania besta de querer palavras. Não as queira quando tudo o que eu puder ter for um olhar.
- Mas seus olhos são frios.
- Eu sei.
- E então?
- Ainda que frios, eles apontam para você. Não estás satisfeita?

Silêncio.

Ele disse:
- Já reparou como um único ponto de luz, ainda que fraco, ilumina parte de um quarto escuro?
- Não entendi.
- Ainda que meus olhos sejam frios, você gosta deles?
- Sim.
- Então estás iluminada.

Silêncio.

Ela disse:
- Vamos dormir.
- Faça silêncio. A luz do dia não pode se assustar.
- Dormir com você é sentir medo de retaliações?
- Dormir comigo é dormir só.

Ele disse:
- Essa fábrica... sua sirene me fere.
- A sirene é alta?
- Ainda que seu ruído fosse baixo, incomodaria.

Ela disse:
- Vamos viajar.
- Para onde?
- Por aí...

Ele disse:
- Preciso beber café.
- Eu também.
- Não quero ir fazer.
- Por que?
- Não tenho pressa.

Ela disse:
- Admiro você.
- Não faça isso.
- Por que?
- Biografias. Ou apelam ou desapontam.
- Mas não quero saber sua biografia. Quero saber quem é você agora.

Ele disse:
- Suicídio é covardia.
- Não, é coragem.
- É triste o desespero. Não suportar a tristeza não é coragem, é covardia.

Ela disse:
- Por que falamos de suicídio?
- Anorexia existencial.

Silêncio.

Ele disse:
- A existência é uma garota doente.
- Não entendi.
- Não precisaria.

Ela disse:
- Conversar é estranho.
- Não entendi.
- Não precisaria....

Clarissa Damasceno Melo

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Casa-Grande (Capítulo I )

Nota: Este conto se estenderá em vários blocos. Dedico-me a escrevê-lo há algum tempo e, pela primeira vez, sinto que é chegada a hora de divulgá-lo. De mim à mim, construo e desconstruo tudo aquilo que eu acredito ser o futuro, o passado e o presente. Não mais que isso.
À você, que me pretende ler, dedico tudo aquilo que isso aqui pretende se formar.
Um beijo,
Clarissa.

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Não quisera eu, me ser, que me foi imposta, em vontade, por entre rugas de mão de mulher, o que eu me seria em suposto. Pois que me edifico aqui, entre vossos olhos, sujeito a desabar por ser nada além de projeções de olhos alheios -, se não teus. Diz-se que o amor é bicho que brota em pé, pois vos digo em voz rouca, que aquilo que brota nos pés é plantado em semente e regado. E eu não creio em amores regados. Amor pra ser amor tem de surgir no mesmo instante em que se nasce. Se tu não nasces já a amar, meu bem, nunca amarás. 
Sugiro uma xícara de café, aceita? Pois olhe bem, as histórias frias e escassas de tudo necessitam de um leitor nutrido. Se tu nutres a ti mesmo, leitor, e se se importa com a quentura de vosso coração, peço para que considere uma xícara de café. Nasci dentro do mato, de parteira. Mainha, cujas pernas grossas de negra mulata, fez seu desencarne desejado depois de muito labutar por cima da terra. Em suma, já nasci matando a minha mãe. A parteira embalou-me nuns panos velhos e levou-me com ela para a casa dos brancos.
Também negra, entrou comigo nos braços pelas portas da cozinha, lugar em que passava a maior parte do dia a cortar temperos e carnes. A gente branca dessa casa falava dois idiomas: o português em que vos descrevo e um inglês miserável que me confundiu toda a infância. A parteira era um ser humano doce e acabou por me criar feito filho. Já que minha mãe jazia esquecida em terras que jamais conhecerei. A infância foi-me dolorosa. Descia com baldes vazios até a cisterna do lado de fora, que ficava a uns quatorze quilômetros da casa grande, e voltava com eles cheios, para o banho das filhas dos patrões. Duas meninas cujos lábios proferiam birra. Hoje, não mais que pó.
A isso, somava-se o dever de limpar a cozinha junto a mainha de criação, varrer o pátio, forrar as camas, tudo em troca para não ser jogado na senzala. Às vezes eu passava, a contragosto de mainha, de fronte a esse lugar. Ouvia, dela, que foi negra criada em senzala, que eu jamais deveria passar por perto. Mas eu passava. Confesse, leitor: tu já deves ter desobedecido ordens, por instinto vosso, para compensar repentinas solidões que aparecem de quando em vez. Repare o plural de solidão: ela nunca vem a sós.


Embora fizesse, durante o dia, atividades grosseiras, eu era uma criança de saúde frágil: andava pelos cantos sentindo falta de ar, a ter febre e pigarrear um catarro massudo que de minha garganta não saía. À noite, sentava-me no muro da varanda e ficava a ver o vento bufar nas folhas das árvores e na grama do chão. Era renascimento. Tu, leitor, já renascestes? Já, em algum momento de vossa pacata vida, sentiu a ti pairando por fora de vosso corpo a invadir o outro? 
Quando eu olhava o vento passar, eu saía de mim e me ia ser as folhas que recebiam esse vento. Digo-vos: a maciez do vento tem brilho rosa-vertigem, e me é encanto até os dias de hoje, que não mais existo. E se eu me deixava de ser para ser a grama verde que balançava no brilho rosa dos ventos, por favor, creia-me. A esses dias, adiciono o velho farfalhar de minha voz de gago, que hoje também jaz no profundo sono de meu corpo. Não, não estou morto –tenho de dizer -, mas estou passando dessa para uma melhor e preciso que conheças a minha história.
Não é lá grande coisa, mas é coisa de ser grande. Não tem poesia em minhas linhas, embora a lírica se faça forte. Devo dizer que tais linhas horizontais estão sendo escritas por dedos que sangraram e ainda sangram, feito os olhos dos mulatos que, nas costas, levavam a corda forte dos Reis sem reinados. Eu não fui de viver com os negros que saíam, de sol a sol, para os canaviais e voltavam suados de sal africano; por sorte ou não, acabei ganhando a admiração dos donos da casa que diziam sempre “Valha-me! Que menino esperto” e, a isso, acrescentava-se “Mas, também pudera, tem sangue escuro por dentro, e gente de sangue escuro nada mais é que moradia de esperteza vã.” Eu não sabia o que ‘vã’ me queria dizer, mas era uma palavra engraçada. À noite, na cozinha, deitado no chão, ficava a repeti-la e a gritá-la com a língua colada no céu da boca, a fazer caracóis. Só parava depois de sentir a saliva escorrendo os cantos da boca e mainha fazer cara de nojo e desatino por isso.
O meu dia amanhecia antes do Sol, que teimava aparecer somente duas horas depois. Antes disso, mainha ficava a contar-me como minha mãe verdadeira era e o que gostava de fazer. A véia me disse que se tratava de um bom coração, embora fosse cheio de desastres em seus caminhos. Vivera pouco, mas vivera em fundo tudo que lhe foi imposto. As duas saíram de algum lugar, inda da África, e viajaram rumo ao Brasil – aqui, onde estamos.
A verdade, leitor, é que minha história é uma Matrioshka, e terás de ter paciência de puxar-me de dentro de outras estórias, e outras, e outras, até chegares a mim, aqui, donde me estou, e, só então, olharás meus dedos que sangram e minha testa que inda goteja. Se estou a me escrever em papel e pena, é que necessito. Entenda: não existe pássaro mais bonito que o Condor. E é tudo o que um dia inda serei.
-
Fechou os olhos, coçou os braços, lacrimejou suor. “Por hoje, chega.” Pensou. Dobrou o papel com as letras frescas, fez oração, e voltou para a cama, onde a escuridão lhe engoliria.


CLARISSA DAMASCENO MELO

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Valor de mundo.

Ferro
Metal
Fumaça:
Coisificaram tudo.

Quanto vale
O suor que escorre
Em linha reta
Nas costas de um homem?

Eu vi meu tempo
Passar por cima
De quem não tem tempo de dizer.

Eu preciso dizer:
Quanto vale o Céu?

Eu vi fumaça
Subir pro Céu e
Me pergunto:
Quanto, quanto vale o Céu?

Se um homem chora
Se um homem sente dor,
Qual é o seu valor?

Quanto vale
Um joelho que sangra?

Eu caí de joelhos
Nesta vida
Para sangrar.

E sangro.

Pelos olhos,
Quando vejo às ruas
Gente de rua.

Eu sangro.

Pelas mãos
Que procuram um rosto
Sem encontrar.

Quanto vale
Um homem
Que não sangra?

Coisificaram a massa crua.
Blindam-na.
Vendem-na.
Cheiram-na.

Todo mundo vira massa
E leva coice.

Quanto vale
A mão que bate?

A mão enferrujada
Que brilha por cima
Do hematoma do viver...

Não são mãos:
Os tiros,
A higiene,
O sumiço.

Isso é coisa.

Quantas são
Mãos de mães
Que agarram o filho para dizer:
"- Não vá." ?

Quais são
Mães de mãos
Que levantam a bandeira
Para lutar?

Qual é o valor da saudade?
Quanto a saudade pode custar?

Pois meu mundo
É coisificado
E enquanto coisa,
Anda pelos cantos, fedendo
Anda errado.

Meu valor do mundo
São meus olhos
E minhas mãos.

CLARISSA DAMASCENO MELO



sexta-feira, 12 de julho de 2013

Vermelha.

Fechem os olhos!
Que é para não ver o sangue escorrer de nossa foice.

O sangue que correu pelas veias
Dos que gritaram contra o povo
Já não mais corre.

Calem a boca!
Que é para não gritarem quando,
Em silêncio,
Quisermos passar.

Ergam seus braços!
Porque precisamos saber
Quem é de luta, e quem não.

Se tentarem queimar nossas bandeiras,
Faremos com que o fogo
Engula vossas carnes.

Quando o sol se pôr,
Lembraremos dos rostos
Que choraram de desespero.

Faremos com que
Os nomes dos valentes
Sejam gritados.

E os dos fracos,
Esquecidos.

Jamais calaremos
A voz dos que gritam
Por justiça.

Nem deixaremos
Com que o grito do opressor
Seja escutado.

Encontre pelo que lutar
E lute.

Falhe se tiver que falhar,
Mas, mude.

O povo que se movimenta
Não fica à sós.

A esperança,
A força,
O desejo
E a vitória se fazem presente
Às mãos de luta.

Levante-se!
Erga-se!

Teus joelhos não
Foram feitos para
O chão.

O chão,
Meus amigos,
São para os perdedores

Para nós,
As estrelas
E a vitória.

CLARISSA DAMASCENO MELO



domingo, 7 de julho de 2013

Céu.

Faça o favor de olhar pro céu
Não pelas estrelas,
Ou pela poesia.

Mas por mim,
Quando eu for embora.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sábado, 6 de julho de 2013

Sobre como esquecer um nome.

Não me pertenço. Nem a mim, nem a meu nome. Nem à noite, nem ao dia. Nem à esquina de minha casa, nem à rua em que morarei. Não me pertenço. Nem a mim, nem a meu nome. Ora, se eu não fosse eu, tranquilamente, seria outra. Mas isso me anula? Certa de que sim, certa de que o próprio soletrar de meu nome já é capaz de me anular, escrevo. 
Não me limitarei a definir a epifania que me sobreveio depois de ontem. Depois de ontem é o hoje que renasce assim que, antes de amanhecer, já existe uma manhã. É estranho como amanheci cheia de certeza, cheia de fatos concretos, cheia de exclamações e explicação para tudo. Prefiro a curva das interrogações. Imagine o movimentar de olhos que seguem, atentos, o concretizar das curvas. Eu sou tais olhos. 
Amanheci. E isso já deveria me bastar. Bastaria. Resolveria. Desafiaria. (Exclamação!!!) Amanheci tendo certeza de que minha pele combina com o tom enigmático e místico do azul. Certeza tive, também, que meus cabelos ficariam melhores se presos num rabo de cavalo alto, para que as pontas dele pudessem balançar acima dos meus ombros. Soletrei meu nome. Ele já havia sido eu antes mesmo que eu pudesse existir. Antes de me jogarem para fora. Tendo a certeza disso também, parti: toda azul, meu cabelo balançava acima de meus ombros. 
Já tentou atravessar a rua olhando para cima? A sensação perigosa de não saber tudo aquilo que lhe vem dos dois lados. Nem da esquerda, nem da direita. De lugar algum. Assim é viver. Atravessei a rua para chegar à clínica. Exames de rotina. Não olhei para cima: antes do risco existe o medo. Assim também é a vida. 
Encostei no balcão. Um 'bom dia' gritado, quase que parido, e um sorriso azul. A moça do balcão sorriu de volta e perguntou meu nome. Ali, ela quebrava minhas pernas. Desfazia as curvas satisfatórias do conforto que uma interrogação me impõe. Conforto pronto, empacotado, comerciável. Tão esgotável que, ali, troquei  todas as certezas que me cercavam por apenas uma: É impossível saber meu nome.

CLARISSA DAMASCENO MELO


sábado, 29 de junho de 2013

Dizagem besta.

Ouvi dizer - de dizagem besta,
Que tu chegarias.

Foi-se anos
Imaginando
O seu chegar.

Você não chegou.

E agora - em dizagem besta,
Eu digo que se vens, não venha:
Fique onde está.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Sobre por onde anda o coração.

Ninguém erguerá muros
Diante de meu povo
Sem que meu povo
Erga braços para derrubá-lo.

Ninguém impedirá
Os caminhos livres de meu povo
Nem barrará teus passos
Diante de meus olhos.

Não destruirão
Qualquer segundo de luta
Por que lutar é eterno
E só por isso meu povo não morre.

Nenhum com ideias doentes passará,
Pois cortaremos teus pés.

Nossos braços possuem aço,
Nossos olhos, o escarlate que escorre
Dos joelhos,
Das mãos,
Da fumaça das máquinas.

Tão só por isso,
Uma cor de sangue:

Vermelho.


CLARISSA DAMASCENO MELO

domingo, 9 de junho de 2013

Sou feita de barro.

Peço licença
Com a boca entreaberta
Que é para não incomodar
Essa gente que grita alto
Mas que não sabe gritar.

Estou ausente de meus olhos
Eles se desmontam de mim
Por pena.
Eu não preciso ver a porta entreaberta
Que me leva para o mundo
Que se esconde do lado de fora.

Meus olhos saltaram de mim,
Mas minhas mãos estão aqui, quentes,
Jogadas na inércia pura do devir.
Ora, ora, companheira, o mundo muda,
O mundo voa,
O mundo se transborda,
Mas não sai de si.

Eis de saber que meus olhos
Estão voltando para mim,
Estão rolando no chão de barro,
No barro dessa gente montada por mãos de Deus.
Eu sou barro puro,
Mas meus olhos...
Eles foram feitos de aço.

Rodopiem!
Sambem!

Não os verei à meia noite
Quando a explosão da pólvora
Rebobinar os anos de chumbo
Da bandeira amarela e verde.

A meia noite não chegará jamais
Para meus olhos de aço
Por que meu barro é vermelho
E pinga.

Gota por gota, colorir o Brasil.

CLARISSA DAMASCENO MELO


sexta-feira, 31 de maio de 2013

MARIA NÃO OLHA IV


Talvez os dias tenham sido feitos para chegar e ir embora. Talvez tenham sido feitos para que nem cheguem, ou para que só cheguem e nada mais. Talvez os dias tenham sido feitos para trazer alguma coisa ou tirar. Talvez os dias cheguem para nos lembrar de algo importante, ou dizer, simplesmente, em seu silêncio, que importância não existe. Aprenda, meu bom, que os dias nem completam nossa existência, nem nos fere. Às vezes, os dias se limitam a serem dias e só.
Maria era aquela mulher comum. Não possuía nada que lhe preenchesse as veias e o sangue. Era só ela e era apenas o que poderia ser. Seus filhos não eram seus e estavam distantes. Não se olhavam nos olhos e nem se sabiam olhar. Os vidros dos quartos dividiam a alma de Maria. Seu marido se fora. Seus sonhos morreram. Seus dias, escassos de luz, eram dias e nada mais. Em seu trabalho, Maria tomava café em copos plásticos. Encostava a boca em plástico duro e mal sabia que aquele plástico também a era. Obtusa em existência, oca de alma, perdida dos sonhos, a menina Maria morrera para que a mulher se pusesse viva. A morte de uma criança é a morte mais triste que tem.
Maria saiu do trabalho em um sábado à tarde. O dia estava quente e as pessoas corriam. Sabe, leitor? Corrida besta. Corre-corre de rua. Coisa de gente cujo destino é limitado. Maria corria em seu destino limitado. Atravessava as ruas, ultrapassava o sinal, mergulhava em uma pressa insana e inconsciente. Corria para todos os lados, mas mal sabia para onde iria. Chegar em casa? Isso é bobagem. Ninguém chega em casa. Enquanto a alma não pausar em descanso tranquilo, e enquanto o descanso não for de prazer, ninguém chegou em casa. Maria não tinha casa. Ela só tinha uma porta, seus filhos, um quarto e só. Maria não tinha casa.
Em toda a sua vida, obedeceu. Seus pais disseram: fará faculdade de administração. Maria fez. Fez, formou-se, trabalhou. Maria não olhava para trás e é por isso que Maria é especial. Repito seu nome de propósito. É gostoso dizer Maria. Maria. Ma. Ria. Mar. Ia. Maria. É quase uma música. É gostoso falar Maria. Mar nosso de cada dia, traga o peixe, traga a festa, traga Maria. Maria não tragou. Maria perdeu-se no vento de sua própria vida e fez-se de um jeito errado indescritível. Defenda-a da próxima vez em que eu chama-la de obtusa. Maria não era obtusa. Maria era Maria. Sua consciência doente não lhe permitira ser outra coisa além de. Maria só poderia ser Maria, ora.
Mas Maria, naquele dia, acordou diferente. Havia uma felicidade escondida nos olhos, cujas pálpebras, doentes, pendiam inertes. Havia ali dentro de suas duas pedras negras, uma sombra de felicidade plena. Arrumou-se em sua rapidez definitiva e partiu. Calçada em sapatos apertados por conveniência, caminhou pelo chão de taco do escritório. Bebeu café em copo plástico. Inteirou-se da vida metalizada a que nascera predestinada ser.
Foi inteiramente Maria o dia inteiro. Mas, atrás de seus olhos, escondida em sombras, a felicidade de Maria explodia. Havia ali uma chuva de fogos de artifício que estouravam em um céu aberto. Não vos digo, leitor, ser essa explosão algum tipo escondido de epifania. Talvez fosse o tempo chamando Maria de volta. Ou fosse Maria alguém que sempre escondeu essa felicidade atrás dos olhos. Os olhos negros, mortos, inanimados de Maria.
A explosão surgia atrás dos olhos, descia-lhe a face internamente, atravessava a garganta e morria ali, antes de ser gritada. Maria não gostava de gritar. Sentiu o vazio que sentia sempre toda vez que abandonava o escritório. O vazio mecânico já era dela por que ela era parte adjacente de seu escritório. Quando este fechava as portas, Maria se fechava junto. Ia pra casa pensando sempre no dia seguinte, na hora exata de fazer voltar seu coração bater.
A urgência de Maria, no entanto, era outra. Estranhamente, ela sentiu a necessidade incômoda e mortal de abraçar seus filhos. Quis ir ver a exposição de artes plásticas. Quis tomar sorvete de tamarindo com calda de limão. Quis atravessar a rua de braços abertos, tomar banho de chuva, escorregar no chão molhado. Quis, Maria, olhar as estrelas quando a noite caísse e ninar seus filhos para que estes pudessem dormir. Maria havia acordado estranha. Os olhos negros eram os mesmos, mas aquela não era Maria.
Mar, doce mar, traga peixe, traga sal, traga amor, traga Maria. Maria não tragou. Fechou o escritório. O coração em chama acesa, quase imperceptível aos olhos dos humanos-maria que passavam pela calçada. Guardou as chaves na bolsa e apressou o passo. Hoje faria lasanha. Esqueceria a dieta fascista que adotou para ela e para os filhos. Maria queria esquecer a existência de seu antigo marido. Juntou toda a pieguice no peito e caminhou, caminhou, correu. Meteu-se a atravessar a rua.
- MARIA! – Gritou alguém.
- MARIA! – Tornou a gritar.
Maria não olhou para trás. Maria não poderia olhar para trás. Ela nunca olha. A vida segue em linha reta e olhar para trás Maria não sabia. Maria não olhou. Alguém gritou Maria, mas Maria não olhou a voz que lhe queria avisar que um carro corria.
O carro cortou a vida de Maria.


CLARISSA DAMASCENO MELO

domingo, 26 de maio de 2013

Verônica.

A Lua anda pelo Céu,
Por cima da casa,
Atenta.

Ela canta:
Canção de ninar.

A assobio é sentido pela cidade
Enquanto os pássaros, coloridos
Batem asas sobre o quarto.

"Toda vez que uma criança
Diz não acreditar em fadas,
Uma fada cai morta em algum lugar."

Mas toda vez
Que a menina de laço vermelho
Abre os lábios para sorrir,
Uma legião delas se levanta.

Não tema a escuridão da noite,
Ela tem a cor dos teus cabelos.

A noite flui silenciosa,
E quando amanhece
É poesia.

Não tenho dúvidas:
Quando o céu está azul,
É Verônica que está sorrindo.

À ti, Verônica Mírian

CLARISSA DAMASCENO MELO


sábado, 25 de maio de 2013

Tenho Medo II

Não tenho medo
Que um dilúvio
Parta a minha rua em dois pedaços.

Tenho medo de atravessá-la,
Crua...
E não me parar em teus braços.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Tenho Medo I

Eu tenho medo.
Não que o mundo não mude.
Não de um tiro na garganta.
Não de uma rua deserta.

Tenho medo de que meus braços
Não possam crescer
Além. 

Que eles se atrofiem
E se percam
No não-caminho ao fim.

Eu tenho medo.
Não das madrugadas.
Não dos caminhos escuros.
Não das gritarias.

Tenho medo de que meus pés
Sejam obedientes ao destino.

Tenho medo.
Não das sentenças, 
Das desconfianças
Das limitações...

Meu medo é tão interno, 
Tão opaco e profundo...
Que é medo de ser 
O que já me tornei. 

CLARISSA DAMASCENO MELO.

domingo, 28 de abril de 2013

Mudar o mundo.

Meu oco
É o velho
Não tilintar de voz.

Ou muda o mundo,
Ou eu morro à sós.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Atravessar a rua II

Segure meu braço
E deixe que minhas mãos
Se apoiem em seus ombros.

Esqueci como é que se faz
Para atravessar a rua
Sozinha.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sábado, 27 de abril de 2013

Decreto.

Decreto o final da poesia saudosista,
Da poesia doente,
E que seus poetas morram!

Decreto o fim da bestialidade humana
Mas que todo ser humano besta
Sobreviva.

Decreto que o próximo seja amado
Mas não mais que amado
Que o umbigo.

Mas que todo umbigo
Continue sendo menor
Do tamanho que já é.

Decreto que as meninas
Cubram suas bocas
Com balas de café

E que os meninos
Aceitem balas de café
Chupadas

E que palavras nossas
Sejam palavras nossas.

Decreto que ninguém deve sentir
Como se não pudesse sentir

E que sinta como achar
Que o sentir lhe faz sentido,
Sem que seu sentido seja marcha de palhaço.

Decreto o fim das linhas
Que se entortam e
Morrem.

Decreto, aliás,
Minha imortalidade.

Quem nasceu para escrever
Não morre.

Decreto que o teto
De todos os quartos
De todas as crianças,

Seja azul.

Seja azul para que
Todas as crianças de
Todos os quartos

Possam, ainda, acreditar
Que existe azul no Céu
Embora uma escala cinza lhe seja erguida
Em olhos.

Decreto o fim - para sempre -
Daquelas palavras
Que não foram ouvidas.

Decreto que não haja
Uma forma sequer de sussurro.

Palavras foram feitas
Para que alguém
As grite!

Decreto o fim
Dos dilemas caóticos
Do povo sem coração.

Decreto morte
Aos sentimentos maus.

E vida, decreto vida,
Àqueles que nos fazem
Sonhar à noite.

E, no mais,
Decreto que meus decretos
Não sejam leis - estas não servem,
Estas são feias.

E se meu decreto for lido
Em alta voz,
Que seja lido
Por uma criança
Que acredita em fadas.

Decreto final:
Nenhuma palavra deve machucar.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Esquina.

Na esquina,
Um senhor fechava a loja de brinquedos
Uma criança enfiava dedos na boca
Uma mulher, carregava um filho
Um filho, carregava uma mãe.

Na esquina,
Ali, na beirada da rua,
Uma menina fugia de casa,
Uma senhora gritava,
E ninguém olhou para trás.

Na esquina,
Mascaram uma bala de goma
Engoliram saliva doce
Artificial.

Na esquina,
Um cão fora atropelado
E uma mão de menina correu o rosto
Que chorava.

A esquina abrigava o mundo,
Mas todo mundo acaba.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Moleque sujo.


Chovia.
A noite começara pelo canto de tua boca e escorregou, inerte, por ali, pelas beiradas. A noite era líquida, bebível e escura. Quantas horas se passaram desde que ela aprendera a beber a noite? Não fazia ideia. Não esperou que lhe chamassem para dormir, estava esquecida. No canto da boca, por onde a noite passara, umas poucas palavras escorregavam escapulentas. Junto às palavras, gotículas de olhos, salgadas, morrendo ali. Já não sabia se era a chuva curvulenta de seus neologismos próprios, ou se era a água salgada que escorria à noite, sempre à noite, quando ia se deitar e lembrava do passado.

Cuidado com o passado.
Ele é um moleque sujo
Que vem nos agarrar de vez em quando.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Fugiu.

A inspiração foge
E deixa, no lugar,
Um pano translúcido
Que não sabe
Mostrar nada.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Filho-de-rua.

Ninguém viu, 
Mas virou a esquina,
Sobre pés descalços,
Um menino filho-de-rua.

CLARISSA DAMASCENO MELO

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Se é noite.


A noite, quanto mais escura, quanto mais profunda, quanto mais noite seja; me é capaz de absorver, lento-absurdamente, em seu viés criativo-produtivo. Não, não digo, pois, que escrevo meu escrever em noites e somente em noites; mas o sabor turvo da escuridão faz-me parecer menos eu e mais meu ego violento que em mim habita e não se mostra. Sem pieguice, a noite traz conforto extra às palavras tais quais estas, que de tão desconfortáveis e confusas, mais parecem justificativa que qualquer outra coisa.
É noite, das que as estrelas, de tão cansadas por estarem onde estão, fazem-se tímidas por detrás das nuvens. Nem mesmo os grilos, nem as rãs, nem os bichos-noite, são capazes de, lá fora, me fazerem acreditar que ali eles estão. Nem eu, nessa noite, estou querendo fazer de minha existência, fato concreto. Eis o motivo tal que faz as palavras que vos descrevo serem singelas de todo seu modo. Não há agonias em minhas palavras, nem encruzilhadas sem respostas. Há somente palavras.
Acusaram-me de labirintar minhas informações. Defendo-me: Não as labirinto; as edifico em diagonal. Há defeito meu, confesso, no ato próprio do contar história; as horas antes que se passam antes do começar a acontecer. Peço desculpas pelos grãos de desaprovação que planto logo no início de cada texto e justifico-me: não sei, diferente, fazer. E se te evoco, leitor, é, pois, que eu te quero atento. Dialogue comigo quando fores me conhecer. Ando livre de tempo e necessitada de prosear além das cruas vias conhecidas.
A noite, lá fora, é noite doida-escura dos sem o que fazer. Noite que parece calda quente, jogada em lentas curvas num lençol, ora azul, ora ela própria. Há algo nela que me põe, inquieta, a comparar-me eu e ela. O silêncio que incomoda. O abismo que incomoda. A incógnita que incomoda. A solidão tão sólida quanto gelo bruto que se bota a derreter, vez por outra, por praticidade ou ação exterior. Nenhum superlativo para nós. Somos, como dizem e digo, eu, agora, coisa de um mesmo fundo poço.
Lá fora, leitor, o silêncio é tão concreto e tão concreto é a ponto de deixar, aqui por dentro, para nós, iscas tais que uso na pesca de inspirações perdidas. No leve estranhar de mim, lembranças. O vento que ecoa e vibra faz com que eu me lembre das vibrações internas e incontroláveis, sem com que, no entanto, me afete exteriormente. Faz com que eu me lembre, dentre todas as outras coisas que também me lembro, a intransitividade das vibrações tais quais esta que sinto no simples fato do lembrar.
E, não somente o vento, mas o borbulhar de folhas que se encrespam em si mesmas, a festa do barulho-líquido que escuto, aqui de dentro, a quebrar o silêncio doloroso para, em troca, presentear a natureza com barulho miúdo que, de tão desconfortável, torna-se essencial. Até o cair de folhas é incômodo bruto e, logo mais, torna-se música. Um pequeno tilintar anti-romântico de festas sobre coisas que caem. Folhas caem. Chuva cai. Estrela cai. E, se tu duvidas, não duvide; vez por outra, pessoas caem também.
Meu fervilhar de consciência, pseudo-adormecido durante o dia, à noite, é capaz de fazer-me coisas absurdamente tristes, absurdamente alegres. Essa bipolaridade, no entanto, bifurca consequências que, em suma, dão-se ao mesmo tempo e sem diagonais, solidamente a fazerem-me inteira. Não serão, julgueis agora, o resultado primordial? Essa quimera que nos completa não é, senão, lado dia e lado noite? O que estou querendo dizer, no entanto, é que meu lado noite é composto ainda por outras tantas quimeras bipolares que, no fim, nem mesmo sei por quantas partes me construíram.
Por algum motivo, a noite cai. E que, nesse momento, os físico-químico-biólogos fiquem permanentemente em silêncio. Não quero ciência capaz de me explicar a frequência noturna da escuridão. Só quero entender a noite de forma poético-lírica. Se eu disser que a escuridão é fruto de pedido meu para treinar minhas vistas quando dia for, por favor, cientistas, silenciem. A noite cai porque, dentro de todos os outros fatores, existe um pedido meu. Caia noite, dê-me vida.
Quando é dia, e me ponho a caminhar pelas ruas de qualquer cidade, vejo coisas que, se fosse noite, eu não veria. Um menino de boca aberta me pede moeda e não as tenho... Perceba que, se fosse noite, eu não o veria. Quando é dia, eu vejo prédios diante de mim e, no entanto, não vejo o que eles escondem atrás de todo o cimento; se fosse noite, a culpa seria dela. Caminho dentro dos carros engarrafados e me atraso diante de um fator que foi criado para não me fazer atrasada. Se fosse noite, e agora eu me sinto exausta e crua, eu caminharia fora dos carros e ainda me sentiria dentro deles; no entanto, seria noite e acabo aqui minhas reclamações.
A noite, leitor, me serve para me fazer criar desculpas grandes. Desculpai-me pelo meu silêncio sólido. Desculpai-me pelas palavras enérgico-amargas. Desculpai-me pelo desprazer de me vestir de mim logo cedo de manhã, mas, no entanto, fazer-me outra aparecer, outras, que também me sou. Desculpai os grandes períodos, os grandes parágrafos. Minha falta de técnica é, talvez, maior que minha necessidade de escrever.
E se minhas desculpas pareceram-lhe poucas ou frias ou escassas de tudo, perdoai, também. Ultimamente, tenho sonhado o dobro. Mas, à noite, o sonho me vem encrespado com o conforto que nem sequer é meu. Imagineis: eu, pobre de juízo, deitada por sobre caldo quente, a imaginar os dias depois destes que me invadem! Que loucura! Se me embargo a sonhar, agora, entenda, é o fator-noite agindo em mim.
Certa vez, vou lhes contar com precisão, em uma aula qualquer, pediram-me para escrever um parágrafo. A estranheza desse fato é por ele pertencer a um tempo outrora sonhado que, agora, por ser sólido-carne, não tem tanta importância. Escrevi e achei o parágrafo o mais bonito do mundo. Muitas letras; meus verbos, conjugados em amor maior, choviam e faiscavam. Mas eis que disseram dele coisas que me encresparam o rosto. Meu júbilo era fracassado, então, eu também o era.
Em contra ponto, noites e mais noites antes desse fato, quando o fato desse fato ainda era um fato a ser sonhado em outros fatos, eu escrevi outro parágrafo sem que me pedissem. Era horroroso: muita técnica, pouca liberdade. Meus verbos não eram meus, nem tampouco, as vogais maiúsculo-minúsculas. Sossegue: abrilhantaram-no. Concluí, agora, porque me embaraço a dizer de minha técnica? Fato é que, durante o dia, só sirvo se eu estiver condicionada a outros tempos. Só faço questão de me ser, no entanto, quando e por quanto eu for julgada para baixo. Só eu sei a resposta.
A noite é a resposta: ela é quem me faz o labutar mais doce-quente. Sem ela, talvez, eu me dedicasse a ver e sentir outras coisas subjacentes e deselegantes. Talvez eu me enfiasse em livros técnicos demais, ou me fizesse nula diante de pensamentos meus. O dia é cheio demais e eu não caibo por dentro dele. Ele me excomungou no dia mesmo em que resolvi nascer à noite. Veja você: e ainda dizem que a noite é traiçoeira!
Durante o dia, eu saio às ruas vestida de trajes limpos e escassos, passo pelas esquinas em que, à noite, trabalham elas que não usam roupas. Quando é dia. Eu vejo a bala atravessar a garganta do bandido-morto. Por quanto mais a luz brilha seu brilhar diante da terra, eu vejo crianças sendo enxotadas de suas casas para irem trabalhar à força, eu vejo mulheres apanhando, eu vejo a escassez de água, eu vejo o descaso, eu vejo meus vejos e vejo a omissão. Sinto-me no dever de, quando ser noite, cuspir pra fora todo o escopo absorvido à luz do dia. Queridos, a noite é minha justiça. Sem ela, não há prazer.
CLARISSA DAMASCENO MELO

Coisa de olho sem brilho.

Se me perguntarem o motivo de minha tristeza, talvez eu responda assim:
- Os olhos, os olhos perderam o brilho.

CLARISSA DAMASCENO MELO

segunda-feira, 25 de março de 2013

Sobre você ou sobre o que você acredita acreditar.


Que a verdade, senhor, seja dita: não pareço eu mesma no instante em que nasço de manhã; nem me reconheceria na imagem de um espelho caso este me ficasse à frente logo quando anoitece. Não que eu me seja muitas ou me seja, vais presumir, protótipo de diversidade. Sou estranha a mim e, mesmo você, que me lê, não me reconheceria. Dirá: ué, tu não escreves aquilo que é teu? Como aquilo que é teu não pode ser você?
De certo, confirmo, digo e morro a dizer que cada linha minha é nascida de mim mesma. São meus contos universais que somente eu conheço. Não existe fábula inventada que não seja a verdade de alguém, creia. Mas a questão-quesito é mais imóvel que tu pensas. Entre o dia e a noite – e essa ideia roubo, eu, agora, do Shakespeare -, existe mais do que sonha sua vã filosofia.  Então, agora, és capaz de notar? Não sou muitas, nem várias. Eu só me sou. E eu sou um espelho quebrado que se parte em vários pedaços. Sou uma que se divide, e então, sou várias. Engula, você, mais esse paradoxo.
Se estiveres a franzir a testa e a julgar-me cabulosamente, então, leitor, cheguei ao meu ponto máximo de estupidez; então, cheguei ao fim. Leia-se: se me esgoto a desenganar-te e fazer-te tu a me debochar e denegrir, ah, cheguei, sim, ao meu final querido. Não, não despeço-me, pois. Que sirvam de lição os dogmas aprendidos e devorados que não nos servem para nada. Tu ficaste trancafiado a quatro paredes, fizeram-te engolir a gramática, os cálculos, as leis da física-inútil-útil, mas jamais – por favor, creia – fizeram com que você engolisse a si mesmo.
Em sua escola nunca te disseram que tu eras livre para não estar ali.  Que tu podias sair a passear pelo pátio, beber água no bebedouro de fora ou, vamos mais longe, pegar suas coisas e ir-se embora para casa ou para a praça onde passariam aquelas pessoas populares. Não. Fizeram-te acreditar que tu deverias continuar ali, sentado. Não foi, leitor? E, se em algum momento, tu puxares da memória que um dia alguém lhe disse isso, favor reconsiderar: se disseram, foram de uso à psicologia-inversa. Disseram só para que tu não acreditasses e então estou certa.
Disseram para você que se você dormisse sem rezar, você teria pesadelos. E mesmo que tu acordasses no meio da noite dizendo que havias rezado, e se chorasses com medo dos monstros deitados em sua cama; falar-te-iam para continuar rezando. Não que a reza não te sirva – e esta serve, mas é que lhe valeria muito mais se te dissessem que você mesmo poderia levantar-se para acender a luz. É isso: ninguém te ensinou a acender a luz.
Disseram que você deveria oferecer sua merenda para o colega do lado, mesmo que este não tenha te desejado bom dia. Eu, leitor, te alforrio de todas essas leis que te enquadraram. Se quiseres comer tudo sem oferecer a ninguém, o direito é seu. Mas faça sabendo que, assim, não és digno de aceitar o que quer que seja de ninguém. Eis que tiro as grades e ponho as cordas.
Fizeram-te supor que homem não chora e se tu, que me lê, for homem, digo que, por favor, derrame agora todas as lágrimas que não te deixaram derramar. Homem chora. Todo homem é, também, mulher. E se tu és homem, dê-me mãos. As minhas, de moça simples, de jovem-velha, de menina-mulher, de vadia e de anã, estão soltas. Jazem por aí e se limitam ao labutar da criação. Mas, se tu que me lê for moça também, dê-me olhos. Talvez os teus já tenham visto um caminho-sonhado que eu jamais vi. Se és moça, deixai-me ver caminhos novos.
Fizeram-te crer que teus pés, embora teus, haveriam de seguir caminhos traçados por outras mãos. Discordo. Embora os caminhos já tenham traços prontos, eles ainda são teus. E se tu não errares caminho algum, jamais saberás qual é aquele que lhe escreveram. Na dúvida, erre todos os passos. Deixe-os marcados na areia da praia, não os deixe passeando pelo cimento. E mesmo que lhe seja forçado o uso de ternos e de roupas pesadas, vai assim mergulhar no mar. Não há peso que não resista ao sal-salgado e à água.
E, agora, comigo, leitor, julgue: passou a vida inteira acreditando no que lhe fora dito. Se disseram-lhe sim, imbecilmente, tu dizias sim. Se te negavam, fazias birra por uns segundos e, logo mais, trocada por doce, calavam a sua boca. Se te fizeram crer que faria frio se tu não preenchesses teus vazios, tu fizera questão de jogar dentro de ti qualquer coisa que lhe pusesse em zona de conforto. E foi assim.
Justo. Se é para a morte que se caminha, por que tu deverias acreditar que todos mentem? Se não souberes responder, creio que tenhas vivido de forma imbecil. A imbecilidade, embora doce, lhe deixa vulnerável ao que quer que seja. E agora vou falar sobre aquilo que nem eu nem você conhecemos. Talvez, a gente faça juízo disso daqui a alguns segundos, alguns meses, anos, ela é tão certa que é incerta. Se tu sabes que vais morrer, então, porque ainda continuas a colonizar sentimentos?
Porque tu engarrafas aquilo que és. Se tu não és peça do tabuleiro que lhe impõem, saia dele! Vamos, leitor. Saia da sala de aula! Acenda a luz! Engula, sozinho, a sua merenda! Chore! Caminhe! Erre caminhos! Só, por favor, por você, que um dia verá a morte; nunca deixai de fazer aquilo que não passa de ser você mesmo porque disseram que de outra forma seria melhor. Se estás em vida, a vida é sua. Ela é tão tua que tu a terá mais vezes e não me assusta o fato dela já ter sido tua outras vezes. Morrer é besteira.
Último pesar: só deixe que lhe calem a boca se o fizerem com um beijo. 

CLARISSA DAMASCENO MELO


quinta-feira, 14 de março de 2013

Solidão.

S
SO
SOL.

SOL
SOLI
SOLID
SOLI
SOL.

SOL
SOLID
SOLIDÃ
SOLIDÃO.
SOLIDÃ
SOLID
SOL

SOLIDÃO.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 13 de março de 2013

Repensar.

Se, de um lado, a opressão capitalista insiste em esconder as injustiças causadas por um sistema que, por sua base, desvaloriza o ser humano frente ao lucro;  do outro existe uma parcela da população que nada sabe, nada vê. É incrível, mas parece que o Sol anda escondido pela peneira.
Atrás dos morros, nas favelas, nos bairros mais pobres e desumanos; estão eles que representam nada mais que índices cabulosos às autoridades. Eles, que normalmente  são acusados de roubo, tráfico, prostituição; eles, detentores de armas, de objetos furtados nos bairros ricos; eles, cheiradores de pó.Os diabos vestidos de prada, que nos enfiam mãos nos bolsos nossos, parecem-nos menos perigosos que aqueles vindos das portas dos fundos do Brasil.  Parece que, com uma mão, a justiça acaricia os bandidos vestidos de terno e, com a outra, envolta à navalhas, dilaceram aqueles que mal sabem por que ou para que estão no mundo.
Se um assassino louco sai de casa armado e aponta a cabeça de um cidadão de bem, o que importa, para a justiça, e para quem o vai condenar, é saber de onde ele veio. Se saiu da casa de seu pai rico, entrou em um carro importado e passou por cima de um... Quem se importa? Foi sem querer, não foi? Em pouco tempo, quando todos esquecerem - e todos se esquecem rápido demais -, ele já poderá dirigir de novo e estará fora da cadeia. Mas, se uma mãe faminta invade uma farmácia para roubar, ela será mais uma a encharcar de lágrimas uma cela que já transborda gente que saiu das portas dos fundos.
O moleque fedorento, que anda nas ruas a mendigar doce, incomoda. O mendigo que invade, quase nu, aquele restaurante importante, incomoda. O pedidor de moeda, incomoda. As mulheres que vendem seus corpos, incomodam. Eles são quem vai pegar nosso dinheiro para comprar drogas. Eles são quem representam a falta de segurança das grandes cidades. Eles são eles, e não são nada. Já os latifundiários, colecionadores de terras produtivas que não produzem, acumuladores de sacos de dinheiro, que não oferecem empregos, que mutilam índios, que poluem... Quem são eles? Eles são o progresso, o futuro, a solução, a mão que nos acaricia e mima. Eles não incomodam ninguém e pecam menos que aqueles que já nasceram para pecar.
Se, de um lado, faltam profissionais em bons empregos, do outro, existem centenas dos chamados trombadinhas que nem sequer souberam ou saberão o real significado da palavra 'oportunidade'. A oportunidade de não precisar roubar, de deitar na cama sem que o policial lhe bata à porta para levar-lhe embora, oportunidade de não ficar pelas calçadas, a passos largos, invadindo pessoas. Oportunidade de ser ouvido pela sociedade que o julga. Oportunidade de ter defesa diante da Justiça cega, oportunidade de se fazer e se ser, sem se preocupar com novas ou antigas leis e, principalmente, a oportunidade de estudar.
O Brasil, para começar a ser Brasil, precisa descriminalizar a pobreza. Políticas públicas precisam ser refeitas e repensadas. Repensados, também, precisam ser os pensamentos daqueles que, mesmo diante dos direitos humanos, defendem a pena de morte, defendem os policiais que utilizam-se de seu poder para humilhar e maltratar. Repensados, precisam ser, em verdade, os pensamentos daqueles que se calam diante das tragédias que presenciam e ajudam a edificar.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sábado, 9 de março de 2013

Nada chega.

Pois, se dizes, amigo, não acreditar; quem dera eu me fizesse diálogo e, embalsamada na eternidade, fizesse-lhe mudar, sem desenganar-te, aquilo que não mais lhe apetece. Não é, pois me credite, essa ruminação tosca de tudo que já engolistes, que te salvará, em lenta marcha, das tuas lembranças más. Se desacreditas em um passado vosso que lhe fez infeliz, e faz-se - tu próprio, um ser humano triste, creia, amigo, que ruminação nenhuma é o fim e nem o fim, uma ruminação.
Se mal engolistes, não ponhas para fora. Tua pieguice é tão disfarçada de sofrimento, que chego - eu mesma, que nada sou - a entediar-me com tuas labutas. Não. Tu não te faz de forte para enganar-me. Tu queres mesmo é terminar de engolir esse presságio do que és hoje somente para, acredite, no futuro, cuspir. É por isso que nada chega perto de ti.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 6 de março de 2013

Amor.


Cresceu com o bico retorcido na boca, que só andava torta. Lá, na rua debaixo, conheceu um amor, mas foi amor intransitivo e, então, fez questão de secar o peito. Diacho! Foi choro pra mais de dia, e foi aí que a boca ficou torta de vez. Seus anos passaram por ela que ela nem se deu o trabalho de deixar o tempo envelhecer a carne. Talvez já tenha nascido velha, com uns três dedinhos de galinha em cada olho.
Sem amor e sem mais lágrima para derramar, deixou-se fazer coque nos cabelos brancos, enquanto os óculos, redondos e pequenos – feito ela, desciam escorrego até a ponta do nariz. Quando espirrava, balançava o corpo inteiro, a garganta dilatava e, para fora, uma massa dura, embebida de sangue, fazia seus olhos arregalarem em conjunto com a boca: valha Deus! Bem, leitor amigo, não faço ideia do que seria a massa, mas, anos depois, com necropsia da pseudo-ciência, descobriu-se que a velha não tinha coração. Em conjunto, leitor, comigo, raciocine: se a massa era dura, mas ainda tinha sangue, era o coração da velha! Tire sua conclusão sem se importar com minhas divagações. Talvez sim, talvez não. Mas, se teu coração endurece, até de ti ele desiste. E vais cuspir ele, todos os dias, pedaço por pedaço. Até seu sangue rola junto.
Quando completou oitenta anos, os olhos, colados de idade cansada, descobriram-se em branca neve a não deixa-la enxergar. A bichinha, sem amor, sem coração; ficou sem olhos. Foi que, em certo dia, uma moça da vizinhança chegou com uma caixa em mãos. Dentro, dois gatos miúdos. “Valha!” Disse a velha “Que diacho de miarada é essa, fulana?!” , “É miarada pouca, dona moça, é que lá em casa não tem espaço pr’os bichinhos e vim saber se a senhora não podia ficar com eles uma noite só... uma noitezinha, que amanhã, logo de manhã, venho buscar de volta” a menina deu dois passos, bateu os calcanhares, e pôs as canelas para terminar de subir a ladeira, secando a testa enlameada de suor e pó.
Passou um, dois, três dias e nada da menina voltar para buscar os gatos. A velha se balançava na cadeira, com os ouvidos entorpecidos no meio dos miados ensurdecedores. Era um infernar de nervos que ela própria era incapaz de suportar. Os gatos mal comiam, só miavam, só sabiam se lamber e se morder como se moldassem a sociedade que os pariu. Ficavam a pular, de cadeira para cadeira, o dia todo. E essa situação miserável fazia a velha gritar dia após dia. Passaram meses, e os gatos, ainda mierentos, faziam da casa da velha o escambal. Sujavam os tricôs com urina laranja, roubavam comida do prato, metiam pelo nas roupas escuras, arranhavam as pernas da senhora e, como não havia visitas, isso ficava por isso mesmo.
Um dia, sentada no pé da cama, a labutar um terço –assim como lhe ensinara a finada mãe, a velha, que era cega, sentiu, nos pés, um ronronar suave. Era amor? Se era ou não era; se era conveniência ou era carentice, ah, como saber? Parou as orações que sabia de cor, e ficava a repetir sempre a última palavra sem saber pra onde seguir. Esqueceu até se tinha seguimento. Ora, oração pela metade não leva ninguém pro céu! Mexia os pés para o bicho se afastar, mas lá estava ele, mudo, a sentir o pé da velha em seu pescoço.  Ódio por ódio, a velha não sentia, verdade. Era mais uma mágoa doente daquilo que ela já não podia sentir.  E aquele gato, ali, mudo, a doar-se inteiro à um amor de velha, a reduziu para uma posição miserável. Ah, era miserável vê-la ali, a ver, sem ver, um amor, um carinho; era aconchegante, mas havia pregos. Sentir é isso: bifurcação.
Com um rosto virado em interrogação, fez pressão no peito enquanto uma de suas mãos descia ao chão em marcha-lenta. Tocou a orelha macia, o pescoço macio e, com as mãos cheias de dedo, e os dedos cheios de curiosidade, agarrou o gato no colo e disse “ah pichano!” Ficaram ali, ela e ele, a se conhecer devagar. O outro, vendo a cena, pulou em seu colo e deixou-se levar ao carinho. Já não importavam os pelos a cair sem piedade em seu colo. Não. O ronronar era uma declaração de afeto que aquela velha cega jamais ouviu. Lembrou-se do rapaz da rua debaixo, e de uma certa dor em chamas que atingiu-lhe o peito. Os dias murchos depois do fato, os olhos secos, também em chamas, a arder devagarzinho toda uma coisa escondida num peito que já era incapaz de sentir, embora sentisse todo dia.
A porta bateu. Ah, leitor, eu me lembro bem daquele dia. Eu estava sentado, de preto, na cadeira ao lado, fazendo silêncio, a tomar nota de tudo. Descrevo-vos copia fiel dos fatos, e, embora os fatos sejam curtos ou bastante factuais, são fatos que, em verdade, existiram. Crer ou não é questão de gosto, mas ter bom gosto de vez em quando nunca matou ninguém. A velha colocou os gatos de lado e, a labutar, chegou à porta. Era a menina que deixou os gatos querendo eles de volta na caixa. Ah, a velha deu um suspiro de susto, outro de tristeza e outro de conformação. O amor não era para ela mesmo. Viu os bichanos serem jogados numa caixa, e, a miarem, seguir as batidas de calcanhar da menina subindo a ladeira.

CLARISSA DAMASCENO MELO

terça-feira, 5 de março de 2013

Ela timidez.

Caminhava com a timidez debaixo dos dois braços. Era timidez mórbida, incomodava, levantava exclamações e perguntas. Era timidez aguçada, um silêncio que doía, que fervilhava. Não era só timidez, era não-vontade de falar. Os ombros caíam murchos em suas beiradas. Os olhos, sempre fechados, esperando o dia amanhecer. Ela caminhava com a timidez debaixo dos dois braços, e apertava os braços, sem saber para onde ir...

CLARISSA DAMASCENO MELO

Tristeza sem pausa.

Na esquina um menino amarelo espera angustiado o trem das sete horas que periga chegar mas não chega não chega o trem das sete horas que periga chegar não chega não chega esgueirando-se de tudo e da movimentação o menino amarelo espera sozinho o trem das sete horas que periga chegar e não chega o estômago desembrulhado e o trem nem virou a esquina.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 1 de março de 2013

Quando amanhece, ser noite.

Eu, poeta-fracasso
Me perco na noite
A divagar...

Pois a noite é tão escura
Tão bêbada
Tão ausente de tudo...

Que dá nojo!
Oh, aquele borrão no céu
É bolo de sujeira.

Aquelas estrelas,
Ali jogadas
Estúpidas, todas elas.

Mesmas estrelas vejo
Na pele, jogadas
Quando amanheço.

São minhas marcas de nascença
Minhas estrelas-de-pele
E eu, eu sou o bolo de sujeira.

Eu sou a noite suja
Que cultiva em mim
O-ser-noite-o-dia-inteiro.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Calda quente.

No meio das encruzilhadas,
Os calcanhares,
Ao se debaterem-se em si,
Acabam por sonorizar
Que vão se debater em outros calcanhares.

Não é lírico, nem é para ser.
Pois que fujo, agora, de toda a romanticidade
Criada nos contos e nas novelas.
Eu fujo dessas linhas,
Por saber que calcanhar ossudo não precisa
De poesia.

Calcanhar ossudo só precisa de outro calcanhar.
A lírica é somente a calda quente.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Sobre veias II

Acho que
Magoei a veia
Que me era dilatada
No coração.

Ai, paixão.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Tempo não é remédio.

Para linhas que não duram,
Para respostas que não saem,
Para amores que não curam,
Para substancias que se subtraem...

Desculpa, isso nem o tempo cura.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O tempo.

O tempo voa, moço.
E, sem ter retorno
Já lembro que te esqueci.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Deixa prender.

Seguram meus pés,
Amarram minhas mãos,
Mas eu deixo...

O que está para matar
Ninguém prende.

CLARISSA DAMASCENO MELO

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Passarinho.

Do portão, 
A menina se perguntava
Por que o passarinho voava
E ela não.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Intransitividade.

Obrigada por perdoar as minhas lacunas vazias, e, vez ou outra, preenchê-la com verbos que eu não saberia conjugar. Obrigada pelo telefonema ao final da tarde, pelos cravos vermelhos que me foram entregues ao fim do trabalho, pelos chocolates... Obrigada por todas as palavras amigas que tens me dado, e pelo cuidado que tens para mim. Obrigada pelos chicletes, por amarrar meus cadarços, por olhar a rua antes que eu a atravesse, por abrir a porta do carro e fazer o pedido ao garçom. Obrigada pelos brincos, pelo vinho, pela soberba, pelos adjetivos e por teus olhos.

Mas, principalmente, obrigada por não existir.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O escrever.

Olhai a moça de choro fácil, olha em teus olhos e tente entender a inundação, inda que prematura seja.
Olhai as vírgulas pausadas em sua vida, e em como, cuidadosamente, ela retira cada uma delas.
Olha em teus cabelos os sinais remotos de uma manhã que não saberia amanhecer;
Olha, em teus cabelos, a pingar, a verdade crua que ela digere e não sabe colocar para fora.
Até seus lábios choram. Vê?
A lágrima goteja em uma chuva lenta, à meio passo,
Inda se forma ali, onde deveria morrer...

São as palavras que, em meio ao enlamear de seu rosto,
Decidem extraviar-se pelos dedos.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Por entre orações.

Fizeram-me orar as orações decoradas, enrolaram-me um terço no braço, e disseram-me para balbuciar, conta por conta, os nomes de meus salvadores. Fizeram-me acreditar no inferno, e que eu iria para o Céu, ver meu Senhor, sentado em sua cadeira de ouro, caso, em minhas orações, mencionasse o quanto o amava  e temia. Ao passo que, à noite, durante as novenas, eu bloqueava o meu balbuciar e, por dentro de meus dentes, a sair uma risadinha seca, eu pensava o quanto o Céu devia ser chato se toda essa gente que labutava um terço fosse, realmente, para lá.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Sobre o que mata.

A garganta de nó,
Mãos vazias,
Passado de pó.

O que mata não está por vir,
Já veio.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Coisa de verbo sem verso.

Encontram-se perdidos,
Sei lá eu onde ou porque,
Os verbos, os eloquentes verbos,
Que não mais aqui estão.

Estão soltos pelas calçadas,
Pelos vácuos de nós,
Pela erudição sombria que quase ninguém entende.
Perdemos os verbos pros versos inatingíveis.

E esta perda é dolorosa.
Pois aqui estou,
Dentro de mim mesma,
A engasgar-me,
Por não saber trilhar as verdadeiras trilhas
Do contar para ser entendida.

Perco-me em mim,
De mim mesma,
Vez ou outra,
A sentir como é
Ser

E ser,
Vez ou outra,
Para ver como é
Sentir.

E sentir, pois então, vos apresento as reticências...

CLARISSA DAMASCENO MELO

Nada de mim.

Se eu precisar me olhar no espelho,
Esconderei as rugas de minhas mãos,
Meus dedos, olhos, boca, língua, ombros, braços,
Pernas...

E ficarei dias jogando-me a esconder peças que me montam.
Só me olharei no espelho,
Quando não sobrar nada de mim.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Dedicação.

Só para combinar,
O céu, a me ver na Terra
Decidiu, também, chorar.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

É Recíproco.

A reciprocidade matou o dengo o doce matou o verso a linha os dois a reciprocidade matou o engarrafamento de pernas a retórica a conjunção a reciprocidade comeu o caminho o verbo a saudade a diagramação engoliu a lírica o relógio o tempo o querer o saber o voto a opinião a máquina de escrever a reciprocidade comeu Drummond Cécília o alfabeto meu inglês a reciprocidade destruiu os sons acabou com a vírgula as pausas as interrupções a reciprocidade perdeu a rima a reciprocidade verteu lágrima verteu mar oceanos décadas milênios um dia uma hora um nome a reciprocidade caminhou por ruas escuras e perdeu-se lenta em cabulosa inanimação e reciprocidade perdeu dedos o viver a imaginação o poema a atmosfera...

E se eu digo, meu doce, que a reciprocidade acabou com tudo,
É porque, meu doce, ela nunca apareceu.

CLARISSA DAMASCENO MELO

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Verdade.

Deixe-me falar verdades.
Das mais cruas às mais cruéis.
Das não-tuas.
Das universais.
Das desconhecidas
Das mutiladas nos vastos papéis.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Presentes.

À mim,
Foi dada a incoerência
Do amar
Sem amada ser.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Se chegar, bata a porta.

Quando chegares, bata a porta. - Disse em um assovio - Traga as flores que pedi, as colocarei no jarro, na mesa do jantar de hoje à noite. Não falte. Poli meus melhores pratos para te receber de volta. Tu saístes daqui tão apressado que esqueceu de levar algumas coisas. Esqueceu as chaves de seu carro e do apartamento de sua mãe, esqueceu seu casaco pendurado atrás da porta, esqueceu suas gravatas - aquelas, que eu ajeitava em você pois você nunca foi capaz de dar um nó. Aliás, em que tu fostes capaz? Tu fostes capaz de ir embora sem levar a mim. Mas, já que voltas, entre em casa e bata a porta. Se trouxer flores, traga-as amarelas, penduradas em um buquê. Estás lembrado das minhas flores favoritas?
Farei teu prato favorito. Comprei os peixes. O vinho. Ah, o vinho... E comprei uma toalha nova. Você costumava reclamar da toalha antiga. Lembra-te? Se não lembrar, entendo. Tu reclamavas de tantas coisas... Da pia do banheiro, que deixava a torneira gotejando; do sofá, que fazia um barulho engraçado quando tu se jogavas nele; do chuveiro, que sempre estava ou muito quente ou muito frio; de mim, que não parava de falar nunca. Mas, quando tu cruzastes a porta pela última vez, eu calei a boca.
E, já que voltas, darei espaço para que fales também. Diga-me, como vai a sua nova mulher? Soube que ela é ainda mais magra que eu e tem cabelos lindos. Parabéns. Você conseguiu. Diga-me... Tu dizes para ela que será eterno também? E ela, quando o escuta, está a dobrar tuas blusas como eu fazia? Está a preparar-te o que comer? Está a retribuir-te com um beijo de 'durma bem'? E você, já decorou quais as tuas flores favoritas? Qual a música que ela ouve com mais frequência, querido? Se tu sabes, então ela é melhor que eu. Tu nunca soubestes quem eu era. Ou o que eu fazia. Ou o que eu queria ser. Tu só sabias que, à noite, eu estaria a ler um livro calmo em nossa cama.
Nosso amor sempre foi intransitivo. Nunca precisou correr a casa, nem as escadas, nem em lugar nenhum. Sempre só precisou existir. Mas, como tudo o que existe, acabou-se em uma segunda-feria. Tu dissestes adeus e eu ouvi, emudecida, as palavras tuas. Fiquei sentada, ali, por dias, sabia?
Com o tempo, percebi que as chaves de seu carro não estavam mais sobre a escrivaninha, nem teu casaco, atrás da porta, e eu, eu nunca mais dei nó em gravata alguma. Tu sumistes por completo. Tudo sumiu. O peixe, o vinho... Até a porta está emperrada, sem ninguém entrar. Apenas eu transito entre o dentro e o fora do que um dia foi nosso, do que, um dia, foi feito de nós pra nós. Tu desatasse o nó.
E, agora, olhando em redor... É melhor que tu não venhas. Não. Não venhas. Eu sei que não trará contigo minhas flores favoritas, e sei que dirá que tu não gostas nem de peixe, nem de vinho, nem de mim. Sei que dirás que não existe outra mulher. Não venha. Tu sujarás o meu tapete, como fazia; e o forro do sofá. E me deixará irritada. Dirá que não mudei a toalha da mesa. E achará ruim os pratos que poli. Não. Não venha. Se chegares, finja que não está. Aliás, finja que está. Ver-te inerte me lembra o tempo que foi nosso. Tu sempre fostes inerte.
Mas, se chegares, bata a porta - Disse em um assovio - Não gosto do vento entrando. Aliás, deixe-a aberta. Não. Não chegue. Não. Não chegue.
Tu trará teu filho que não é meu. E ainda me mostrará quão linda é a tua nova mulher. Seu filho vai estar falando as primeiras palavras, mas não saberá meu nome. Não traga ninguém. Não venha. Não traga flores amarelas. Não traga a sua mulher. Não traga seu filho. Eu não comprei vinho. Não comprei uma toalha nova. Está tudo velho. O tempo passou, querido. Mas ainda é ontem. Vais chegar? Se chegar, bata a porta...


Fechou um olho, fechou o outro.
Deitada, tinha as mãos descansadas sobre o peito.
A boca, trêmula, ainda balbuciava na escuridão.

CLARISSA DAMASCENO MELO