Para longe de mim
Tais terços e rosários e credos...
Não quero versículos
Em meu útero.
Dentro de mim,
somente amor e liberdade.
Clarissa D. Melo
Páginas
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
quarta-feira, 11 de setembro de 2013
O que come quem não come a Lua.
A verdade é que a incerteza
é a comida
de quem vive
sob o céu.
Clarissa D Melo
é a comida
de quem vive
sob o céu.
Clarissa D Melo
domingo, 1 de setembro de 2013
Medo de mim.
Você supõe o que eu passo,
O que eu penso
E o que eu faço...
Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...
Dos passos gelados que passeiam de madrugada por cima da cama gelada sem forro sem mágoas com lágrimas de nós que não existimos à sós. De que tens medo se eu me perco me atrevo e no desassossego eu não volto jamais....?!
Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...
Me diga afinal o que te aflige o que te faz mal o que te faz incoerente inconsequente ser vivente em sua mente me faz morrer...
Você supõe o que eu passo,
O que eu penso
E o que eu faço...
Mas não diz jamais sobre janelas que se abrem que são delas.. Delas que já se foram e que também não voltam atrás... Tu reclamas de solidão mas em seu coração o que existe é fato é rastro é um sem-fim de coisas.
Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...
Mas a verdade é que tens medo
Dos-meus-passos.
Clarissa Damasceno Melo
O que eu penso
E o que eu faço...
Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...
Dos passos gelados que passeiam de madrugada por cima da cama gelada sem forro sem mágoas com lágrimas de nós que não existimos à sós. De que tens medo se eu me perco me atrevo e no desassossego eu não volto jamais....?!
Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...
Me diga afinal o que te aflige o que te faz mal o que te faz incoerente inconsequente ser vivente em sua mente me faz morrer...
Você supõe o que eu passo,
O que eu penso
E o que eu faço...
Mas não diz jamais sobre janelas que se abrem que são delas.. Delas que já se foram e que também não voltam atrás... Tu reclamas de solidão mas em seu coração o que existe é fato é rastro é um sem-fim de coisas.
Mas a verdade é que tens medo
Dos meus passos...
Mas a verdade é que tens medo
Dos-meus-passos.
Clarissa Damasceno Melo
sábado, 31 de agosto de 2013
Em um pedido, me movo.
Como é triste a fome dos homens!
A fome que mata e congela
Que desumaniza e absorve
Que dilacera e destroi...
Meu pai, se fores abrir a janela
Para ver o mundo ou a calçada
Ponha, na altura dos teus olhos,
A esperança que inda nutres no peito.
A pequena esperança que nutristes
Quando, em concha, pusestes tuas mãos
Para receber nosso Cristo, Teu Corpo e Teu Sangue.
A mesma esperança deposites defronte teus olhos, pai
Para não sofrer de lacrimação assim que vires
Uma criança cortada ao meio, em choro, por fome e miséria.
Não tenteis, meu pai, salvar o mundo
Não se salva assim, tão de repente, algo tão perdido...
O mundo perdeu-se, meu pai, foi-se embora, voou daqui.
Tenteis, em seu lugar, mudar teus passos.
Mas não como quem muda de esquina, de rua ou praça
Tenteis mudar o mundo como se fosses arrancar - de um buraco,
Todas as vidas dos homens, todos os olhos desses homens,
Todos os mundos desses homens.
E reconstruirias, pai, pedra a pedra,
um novo mundo.
Livre dos imperialistas, dos falsos e dos inconsequentes,
Livrarias o mundo inteiro dos falsos profetas
E da fome, da seca, da cerca
Do medo, do luxo, dos barões
Dos grandes e miseráveis barões.
Quão dolorida é a voz do homem
Que com seus braços de aço
Ergue muros contra seu povo!
Os hematomas, as jaulas, as mentiras e a tortura...
Ao latifúndio equiparam-se,
Sobre as terras, não me movo, não me calo,
Eu me espalho e me rebelo.
Meu pai, faz de mim olhos, faz de mim nervos, faz de mim coragem
Ponha-me de frente aos homens ferozes,
De frente aos roedores, aos exploradores,
Aos desprezíveis...
Faz de mim, pai, a surra mundial
A surra que destruirá aqueles que militam contra o povo.
Faz, pai
Faz.
Clarissa D. Melo
A fome que mata e congela
Que desumaniza e absorve
Que dilacera e destroi...
Meu pai, se fores abrir a janela
Para ver o mundo ou a calçada
Ponha, na altura dos teus olhos,
A esperança que inda nutres no peito.
A pequena esperança que nutristes
Quando, em concha, pusestes tuas mãos
Para receber nosso Cristo, Teu Corpo e Teu Sangue.
A mesma esperança deposites defronte teus olhos, pai
Para não sofrer de lacrimação assim que vires
Uma criança cortada ao meio, em choro, por fome e miséria.
Não tenteis, meu pai, salvar o mundo
Não se salva assim, tão de repente, algo tão perdido...
O mundo perdeu-se, meu pai, foi-se embora, voou daqui.
Tenteis, em seu lugar, mudar teus passos.
Mas não como quem muda de esquina, de rua ou praça
Tenteis mudar o mundo como se fosses arrancar - de um buraco,
Todas as vidas dos homens, todos os olhos desses homens,
Todos os mundos desses homens.
E reconstruirias, pai, pedra a pedra,
um novo mundo.
Livre dos imperialistas, dos falsos e dos inconsequentes,
Livrarias o mundo inteiro dos falsos profetas
E da fome, da seca, da cerca
Do medo, do luxo, dos barões
Dos grandes e miseráveis barões.
Quão dolorida é a voz do homem
Que com seus braços de aço
Ergue muros contra seu povo!
Os hematomas, as jaulas, as mentiras e a tortura...
Ao latifúndio equiparam-se,
Sobre as terras, não me movo, não me calo,
Eu me espalho e me rebelo.
Meu pai, faz de mim olhos, faz de mim nervos, faz de mim coragem
Ponha-me de frente aos homens ferozes,
De frente aos roedores, aos exploradores,
Aos desprezíveis...
Faz de mim, pai, a surra mundial
A surra que destruirá aqueles que militam contra o povo.
Faz, pai
Faz.
Clarissa D. Melo
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Em protesto, não nasço.
- Mas concorde comigo: assim que nasces, tu cerras o pulso em protesto.
- Protesto a quê?
- Nascer.
Clarissa D Melo
Sobre censura.
Eles gritam: surras vazias.
No meio da fumaça
Dos cartazes, das gargantas:
Um brilho vermelho.
Mas olha que ironia:
Para provocar a alergia
Moisés empunhou um cajado
E por todo lado,
O mar vermelho se espalhou.
Tirem-me dessa tirania
A verdade está no ar:
Concorde que é covardia
Esse grito que me impede de gritar.
Clarissa D Melo
sexta-feira, 16 de agosto de 2013
CAMPANHA PELA LIBERDADE
Será preciso que se comece a saber: embora seja eu a escrever, o mesmo eu não sou. Se possível, perceba: dentro de cada um existem dois; e como dois, plural. E por essa indiscutível fatalidade, indago: não lhe assusta serdes mais de um? O confuso e o sereno, o vivo e o cadáver, o feio e o belo... todos estes sendo você?
Não lhe assusta a fatalidade doentia que lhe põe a ser mal mesmo quando és bom? Quase me despedaço ao perceber que posso livrar apenas uma criança do sentimento inesgotável de fome e miséria, mas não todas. Essa omissão não lhe fere o caráter? Quem pode ser você quando um tiro leva a vida de alguém? Nas horas de horror, eu sou o revólver.
Pois quem seria eu? As mãos que apertam o gatilho? Ou as que repousam dedos sobre o rosto já escasso de sangue? Minhas próprias mãos se omitem da escolha assim que percebem que viver é escolher. Elas escolhem o plural. Aquele estado de gosto que une o sim, o não e o porvir.
Vais entender, espero, que não é você a desferir um golpe mortal na cabeça de alguém. Mas tenho que dizer, ainda que áspera, que quando a casa de alguém é invadida no Morro por um policial corrupto, você está em sua casa sendo... você. Embora você esteja em sua casa, quando um policial aponta a arma para a cabeça de alguém, também é tua a mão que atira.
A mão também é tua por que você se ausenta. Enquanto o mundo de muitos se transforma em sangue, poeira e escuridão; suas mãos preparam o seu café. E se eu digo que tuas mãos são as mesmas a atirar, eu digo, em conjunto, com o meu segundo-eu, que a cabeça a explodir também é tua.
E se todo mundo, além de um, são dois, eu não consigo entender a calmaria nos grandes centros enquanto o sangue do povo escorre cada ladeira dos Morros. Não entendo por que continuar assistindo à novelas das duas, seis, oito e o escambal de horas, se elas não dizem aquilo que precisa ser gritado. Não entendo por que assistir ao Jornal Nacional se ele não vai apontar o dedo para os policiais assassinos. Eles apontam o dedo para quem não tem por onde gritar.
Então eu grito: Eu quero uma polícia que me defenda! Que defenda o povo! E não que o extermine! Eu quero uma política sincera que converse com as massas! Eu quero poder ir às ruas sem precisar sofrer com a imagem de pessoas deitadas em papelão! EU QUERO A LIBERDADE DE MEU POVO! É pedir muito?
Quando eu entro no ônibus para ir para a UESC, eu vejo, pela janela, dezenas de pessoas deitadas nas ruas. Eu penso: Deus, por que eu estou indo a uma universidade e estas pessoas não? Eu penso, com todo o coração, o que me faz melhor. Não sou melhor. Eu tive sorte.
Quando você se revolta com tudo aquilo que lhe faz menor, que lhe oprime; o mesmo Sistema excludente e opressor lhe chama de vândalo. Os jornalões lhe preparam uma sopa de mentiras e você a bebe calado. Onde mora a liberdade em um Sistema que lhe engana, estupra e mata sem que você perceba?
Bruno Torres, Andresa e Nicolas foram presos por protestarem contra isso tudo. E por terem ido contra todos os interesses dos grandes barões - dos grandes e miseráveis barões, continuam presos nas amarras da injustiça. Até onde seremos censurados por nadar contra a maré? Eu tenho medo do silêncio daqueles que sabem de tudo isso e se mantêm calados. Eu tenho medo que tudo isso continue massacrando aqueles que possuem ideias. E, sobretudo, eu tenho medo que a injustiça continue a criar suas filhas para que nos prendam quando estivermos tentando mudar o mundo para todos nós.
CLARISSA DAMASCENO MELO
PARA AJUDAR:
segunda-feira, 12 de agosto de 2013
Fim.
Como em coisa transformada,
lançou-se sobre as águas;
minutos depois,
nem coisa, nem ele:
a morte.
Clarissa D Melo
lançou-se sobre as águas;
minutos depois,
nem coisa, nem ele:
a morte.
Clarissa D Melo
Definição.
*
- Amor é quando você está disposto a morrer por alguém?
- Não. Amor é quando você está disposto a viver por alguém.
Clarissa D Melo
quinta-feira, 8 de agosto de 2013
Casa-Grande (Capítulo II)
A Casa Grande era
uma propriedade extensa. O chão, forrado de madeira, possuía som próprio, e era
som de unha que arranha; som fino, para temperar de terror as cabeças dos que
se faziam pisar e repisar. Mainha chegou a ver, perdidas entre as muitas
paredes, algumas sombras que ela jamais soube explicar de onde vieram. Talvez
fossem outros narradores a espiar a estória passando, ou fossem os próprios
personagens dessa estória se valendo do futuro para voltar ao passado e reviver tais anos de desilusão.
Dona Sinhá era
linda como o amanhecer. Casara jovem e sem amor. O amor foi se edificando, com
o passar dos anos, entre as paredes e as sombras. Embora fosse amor fabricado,
inda era amor e amor dos fortes - ainda que a fortaleza seja relativa, e o relativo uma certeza. Já o Sinhô, homem
forte cuja bravura verás em braço, era de um silêncio que feria. No entanto,
era dono de olhos que diziam aquilo que ele nunca precisou dizer. Seu cansaço
por estar onde e como estava era estampado no escorrimento que saía de seus
olhos azuis. Amara a mulher, mas era amor menor, de contrato e conveniência.
Desse amor se valeu a vida, obscura de silêncios que tu não ouvirá.
Quando compraram
Mainha, negra forte e áspera, compraram, também, uma negra menor. Mainha tinha
braços largos e era vinte e poucos anos mais velha que a outra; era ser
pensante, embora se fizesse objeto por obrigação e ódio próprio. Inda
lembrava-se de sua finada mãe, igualmente forte, tirada de um arredor africano
que ela mesma não sabia onde ficava. Sem saber de histórias e suas origens,
cresceu amarrada nos bordados da saia dela, que morreu de chicote forte no
lombo.
A negra menor
conhecera Mainha depois que chegara à antiga casa que serviam. Sendo mais nova, não conhecera sua mãe, nem
por onde andava. Só sabia que andara de casa em casa, servindo de si mesma para
crescer e aprender o mundo do jeito que lhe era menos doloroso. Cresceu vendo o sangue de sua gente escorrer ladeiras. Era sua história sendo extinta sem se entender em
seus olhos, que choravam de desaprovação a cada gota vermelha que caía nos pés
daqueles que também a eram.
Fez promessa forte
pros caboclos mortos. Jurou fidelidade a si mesma: seria, um dia, sinhá para
bater em moça branca. Todo seu ódio e fúria traduzir-se-iam em pancadas de
veneno agreste. Um dia amarraria, ao tronco, mãos delicadas de moças claras e,
a gritarem, morreriam de dor. Sentiriam, tais quais negras, a dor de unhas invadirem as carnes. Tais quais negras, gritariam. Tais quais negras, morreriam.
Foram, ela e
Mainha, escolhidas pelo Sinhô para trabalhos dentro da Casa Grande. Logo,
reunidas em amizade que nasce de precisão, uma gostou da outra e, a outra, fez
da uma objeto de conversas infindáveis. Atravessavam noite, no porão, a
conversarem como deveria ser o lugar que era naturalmente seu e, se em algum
dia, perder-se-iam em liberdade doce. Depois, com o clarear do dia,
colocavam-se a fazer as tarefas de escravas.
Dona Sinhá pouco
entrava na cozinha. Somente para fazer as ordens e as humilhações, entrava de
quando em vez; pisava por uns cantos, derrubava umas louças finas, ou por sem
querer, ou por descaração própria, para que as negras viessem limpar tudo outra
vez. Era mulher magra, mas seu rosto, sempre levantado, fazia dela
bicho que não se encosta. Reclamava da louça, da mesa, dos serviços. Era, por
se dizer, escrava de si mesma que, entediada, ia se divertir com a criadagem.
- Diga-me, querido
– Disse ela encostada à cabeceira da cama, certo dia, enquanto via seu marido
se arrumar para deitar ao seu lado – Sente saudades dos tempos antigos?
Interrogativo,
Sinhô olhou-a emburrado, como sempre fora, e, a olhar-lhe nos olhos, respondeu:
- Que pergunta
inútil é essa?
- Só pergunto por
querer saber.
- Não pergunte. Vá
dormir, que eu também tenho que fazer.
- Fazer por quê?
Perdendo a
paciência, jogou-se no travesseiro e deitou-se do lado oposto, para não encarar
a mulher. E disse:
- Vosmicê, por
favor, esqueça que aqui estou. Se quiseres prosear inutilidade, ou pegue
espelho e se veja nele ou faz favor de amanhã descer a Rampa para procurar
amiga besta. Eu não sou amiga besta. – E
caiu em sono profundo que só acabou no dia seguinte.
Clarissa Damasceno Melo
segunda-feira, 5 de agosto de 2013
Parte um da parte única.
Ela disse:
- Você tem essa mania besta de não me responder!
Calmo, respondeu:
- E você, essa mania besta de querer palavras. Não as queira quando tudo o que eu puder ter for um olhar.
- Mas seus olhos são frios.
- Eu sei.
- E então?
- Ainda que frios, eles apontam para você. Não estás satisfeita?
Silêncio.
Ele disse:
- Já reparou como um único ponto de luz, ainda que fraco, ilumina parte de um quarto escuro?
- Não entendi.
- Ainda que meus olhos sejam frios, você gosta deles?
- Sim.
- Então estás iluminada.
Silêncio.
Ela disse:
- Vamos dormir.
- Faça silêncio. A luz do dia não pode se assustar.
- Dormir com você é sentir medo de retaliações?
- Dormir comigo é dormir só.
Ele disse:
- Essa fábrica... sua sirene me fere.
- A sirene é alta?
- Ainda que seu ruído fosse baixo, incomodaria.
Ela disse:
- Vamos viajar.
- Para onde?
- Por aí...
Ele disse:
- Preciso beber café.
- Eu também.
- Não quero ir fazer.
- Por que?
- Não tenho pressa.
Ela disse:
- Admiro você.
- Não faça isso.
- Por que?
- Biografias. Ou apelam ou desapontam.
- Mas não quero saber sua biografia. Quero saber quem é você agora.
Ele disse:
- Suicídio é covardia.
- Não, é coragem.
- É triste o desespero. Não suportar a tristeza não é coragem, é covardia.
Ela disse:
- Por que falamos de suicídio?
- Anorexia existencial.
Silêncio.
Ele disse:
- A existência é uma garota doente.
- Não entendi.
- Não precisaria.
Ela disse:
- Conversar é estranho.
- Não entendi.
- Não precisaria....
Clarissa Damasceno Melo
- Você tem essa mania besta de não me responder!
Calmo, respondeu:
- E você, essa mania besta de querer palavras. Não as queira quando tudo o que eu puder ter for um olhar.
- Mas seus olhos são frios.
- Eu sei.
- E então?
- Ainda que frios, eles apontam para você. Não estás satisfeita?
Silêncio.
Ele disse:
- Já reparou como um único ponto de luz, ainda que fraco, ilumina parte de um quarto escuro?
- Não entendi.
- Ainda que meus olhos sejam frios, você gosta deles?
- Sim.
- Então estás iluminada.
Silêncio.
Ela disse:
- Vamos dormir.
- Faça silêncio. A luz do dia não pode se assustar.
- Dormir com você é sentir medo de retaliações?
- Dormir comigo é dormir só.
Ele disse:
- Essa fábrica... sua sirene me fere.
- A sirene é alta?
- Ainda que seu ruído fosse baixo, incomodaria.
Ela disse:
- Vamos viajar.
- Para onde?
- Por aí...
Ele disse:
- Preciso beber café.
- Eu também.
- Não quero ir fazer.
- Por que?
- Não tenho pressa.
Ela disse:
- Admiro você.
- Não faça isso.
- Por que?
- Biografias. Ou apelam ou desapontam.
- Mas não quero saber sua biografia. Quero saber quem é você agora.
Ele disse:
- Suicídio é covardia.
- Não, é coragem.
- É triste o desespero. Não suportar a tristeza não é coragem, é covardia.
Ela disse:
- Por que falamos de suicídio?
- Anorexia existencial.
Silêncio.
Ele disse:
- A existência é uma garota doente.
- Não entendi.
- Não precisaria.
Ela disse:
- Conversar é estranho.
- Não entendi.
- Não precisaria....
Clarissa Damasceno Melo
quinta-feira, 25 de julho de 2013
Casa-Grande (Capítulo I )
Nota: Este conto se estenderá em vários blocos. Dedico-me a escrevê-lo há algum tempo e, pela primeira vez, sinto que é chegada a hora de divulgá-lo. De mim à mim, construo e desconstruo tudo aquilo que eu acredito ser o futuro, o passado e o presente. Não mais que isso.
À você, que me pretende ler, dedico tudo aquilo que isso aqui pretende se formar.
Um beijo,
Clarissa.
---
Não quisera eu, me
ser, que me foi imposta, em vontade, por entre rugas de mão de mulher, o que eu
me seria em suposto. Pois que me edifico aqui, entre vossos olhos, sujeito a
desabar por ser nada além de projeções de olhos alheios -, se não teus. Diz-se
que o amor é bicho que brota em pé, pois vos digo em voz rouca, que aquilo que
brota nos pés é plantado em semente e regado. E eu não creio em amores regados.
Amor pra ser amor tem de surgir no mesmo instante em que se nasce. Se tu não
nasces já a amar, meu bem, nunca amarás.
Sugiro uma xícara de café, aceita? Pois olhe
bem, as histórias frias e escassas de tudo necessitam de um leitor nutrido. Se
tu nutres a ti mesmo, leitor, e se se importa com a quentura de vosso coração,
peço para que considere uma xícara de café. Nasci dentro do mato, de parteira.
Mainha, cujas pernas grossas de negra mulata, fez seu desencarne desejado
depois de muito labutar por cima da terra. Em suma, já nasci matando a minha
mãe. A parteira embalou-me nuns panos velhos e levou-me com ela para a casa dos
brancos.
Também negra, entrou comigo nos braços pelas
portas da cozinha, lugar em que passava a maior parte do dia a cortar temperos
e carnes. A gente branca dessa casa falava dois idiomas: o português em que vos
descrevo e um inglês miserável que me confundiu toda a infância. A parteira era
um ser humano doce e acabou por me criar feito filho. Já que minha mãe jazia
esquecida em terras que jamais conhecerei. A infância foi-me dolorosa. Descia
com baldes vazios até a cisterna do lado de fora, que ficava a uns quatorze
quilômetros da casa grande, e voltava com eles cheios, para o banho das filhas
dos patrões. Duas meninas cujos lábios proferiam birra. Hoje, não mais que pó.
A isso, somava-se o dever de limpar a cozinha
junto a mainha de criação, varrer o pátio, forrar as camas, tudo em troca para
não ser jogado na senzala. Às vezes eu passava, a contragosto de mainha, de
fronte a esse lugar. Ouvia, dela, que foi negra criada em senzala, que eu
jamais deveria passar por perto. Mas eu passava. Confesse, leitor: tu já deves
ter desobedecido ordens, por instinto vosso, para compensar repentinas solidões
que aparecem de quando em vez. Repare o plural de solidão: ela nunca vem a sós.
Embora fizesse,
durante o dia, atividades grosseiras, eu era uma criança de saúde frágil:
andava pelos cantos sentindo falta de ar, a ter febre e pigarrear um catarro
massudo que de minha garganta não saía. À noite, sentava-me no muro da varanda
e ficava a ver o vento bufar nas folhas das árvores e na grama do chão. Era
renascimento. Tu, leitor, já renascestes? Já, em algum momento de vossa pacata
vida, sentiu a ti pairando por fora de vosso corpo a invadir o outro?
Quando eu olhava o vento passar, eu saía de mim
e me ia ser as folhas que recebiam esse vento. Digo-vos: a maciez do vento tem
brilho rosa-vertigem, e me é encanto até os dias de hoje, que não mais existo.
E se eu me deixava de ser para ser a grama verde que balançava no brilho rosa
dos ventos, por favor, creia-me. A esses dias, adiciono o velho farfalhar de
minha voz de gago, que hoje também jaz no profundo sono de meu corpo. Não, não
estou morto –tenho de dizer -, mas estou passando dessa para uma melhor e
preciso que conheças a minha história.
Não é lá grande coisa, mas é coisa de ser
grande. Não tem poesia em minhas linhas, embora a lírica se faça forte. Devo
dizer que tais linhas horizontais estão sendo escritas por dedos que sangraram
e ainda sangram, feito os olhos dos mulatos que, nas costas, levavam a corda
forte dos Reis sem reinados. Eu não fui de viver com os negros que saíam, de
sol a sol, para os canaviais e voltavam suados de sal africano; por sorte ou
não, acabei ganhando a admiração dos donos da casa que diziam sempre “Valha-me!
Que menino esperto” e, a isso, acrescentava-se “Mas, também pudera, tem sangue
escuro por dentro, e gente de sangue escuro nada mais é que moradia de
esperteza vã.” Eu não sabia o que ‘vã’ me queria dizer, mas era uma palavra
engraçada. À noite, na cozinha, deitado no chão, ficava a repeti-la e a gritá-la
com a língua colada no céu da boca, a fazer caracóis. Só parava depois de
sentir a saliva escorrendo os cantos da boca e mainha fazer cara de nojo e
desatino por isso.
O meu dia amanhecia antes do Sol, que teimava
aparecer somente duas horas depois. Antes disso, mainha ficava a contar-me como
minha mãe verdadeira era e o que gostava de fazer. A véia me disse que se
tratava de um bom coração, embora fosse cheio de desastres em seus caminhos.
Vivera pouco, mas vivera em fundo tudo que lhe foi imposto. As duas saíram de
algum lugar, inda da África, e viajaram rumo ao Brasil – aqui, onde estamos.
A verdade, leitor, é que minha história é uma
Matrioshka, e terás de ter paciência de puxar-me de dentro de outras estórias,
e outras, e outras, até chegares a mim, aqui, donde me estou, e, só então,
olharás meus dedos que sangram e minha testa que inda goteja. Se estou a me
escrever em papel e pena, é que necessito. Entenda: não existe pássaro mais
bonito que o Condor. E é tudo o que um dia inda serei.
-
Fechou os olhos, coçou os braços, lacrimejou
suor. “Por hoje, chega.” Pensou. Dobrou o papel com as letras frescas, fez oração, e voltou para a cama, onde a
escuridão lhe engoliria.
CLARISSA DAMASCENO MELO
segunda-feira, 15 de julho de 2013
Valor de mundo.
Ferro
Metal
Fumaça:
Coisificaram tudo.
Quanto vale
O suor que escorre
Em linha reta
Nas costas de um homem?
Eu vi meu tempo
Passar por cima
De quem não tem tempo de dizer.
Eu preciso dizer:
Quanto vale o Céu?
Eu vi fumaça
Subir pro Céu e
Me pergunto:
Quanto, quanto vale o Céu?
Se um homem chora
Se um homem sente dor,
Qual é o seu valor?
Quanto vale
Um joelho que sangra?
Eu caí de joelhos
Nesta vida
Para sangrar.
E sangro.
Pelos olhos,
Quando vejo às ruas
Gente de rua.
Eu sangro.
Pelas mãos
Que procuram um rosto
Sem encontrar.
Quanto vale
Um homem
Que não sangra?
Coisificaram a massa crua.
Blindam-na.
Vendem-na.
Cheiram-na.
Todo mundo vira massa
E leva coice.
Quanto vale
A mão que bate?
A mão enferrujada
Que brilha por cima
Do hematoma do viver...
Não são mãos:
Os tiros,
A higiene,
O sumiço.
Isso é coisa.
Quantas são
Mãos de mães
Que agarram o filho para dizer:
"- Não vá." ?
Quais são
Mães de mãos
Que levantam a bandeira
Para lutar?
Qual é o valor da saudade?
Quanto a saudade pode custar?
Pois meu mundo
É coisificado
E enquanto coisa,
Anda pelos cantos, fedendo
Anda errado.
Meu valor do mundo
São meus olhos
E minhas mãos.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Metal
Fumaça:
Coisificaram tudo.
Quanto vale
O suor que escorre
Em linha reta
Nas costas de um homem?
Eu vi meu tempo
Passar por cima
De quem não tem tempo de dizer.
Eu preciso dizer:
Quanto vale o Céu?
Eu vi fumaça
Subir pro Céu e
Me pergunto:
Quanto, quanto vale o Céu?
Se um homem chora
Se um homem sente dor,
Qual é o seu valor?
Quanto vale
Um joelho que sangra?
Eu caí de joelhos
Nesta vida
Para sangrar.
E sangro.
Pelos olhos,
Quando vejo às ruas
Gente de rua.
Eu sangro.
Pelas mãos
Que procuram um rosto
Sem encontrar.
Quanto vale
Um homem
Que não sangra?
Coisificaram a massa crua.
Blindam-na.
Vendem-na.
Cheiram-na.
Todo mundo vira massa
E leva coice.
Quanto vale
A mão que bate?
A mão enferrujada
Que brilha por cima
Do hematoma do viver...
Não são mãos:
Os tiros,
A higiene,
O sumiço.
Isso é coisa.
Quantas são
Mãos de mães
Que agarram o filho para dizer:
"- Não vá." ?
Quais são
Mães de mãos
Que levantam a bandeira
Para lutar?
Qual é o valor da saudade?
Quanto a saudade pode custar?
Pois meu mundo
É coisificado
E enquanto coisa,
Anda pelos cantos, fedendo
Anda errado.
Meu valor do mundo
São meus olhos
E minhas mãos.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sexta-feira, 12 de julho de 2013
Vermelha.
Fechem os olhos!
Que é para não ver o sangue escorrer de nossa foice.
O sangue que correu pelas veias
Dos que gritaram contra o povo
Já não mais corre.
Calem a boca!
Que é para não gritarem quando,
Em silêncio,
Quisermos passar.
Ergam seus braços!
Porque precisamos saber
Quem é de luta, e quem não.
Se tentarem queimar nossas bandeiras,
Faremos com que o fogo
Engula vossas carnes.
Quando o sol se pôr,
Lembraremos dos rostos
Que choraram de desespero.
Faremos com que
Os nomes dos valentes
Sejam gritados.
E os dos fracos,
Esquecidos.
Jamais calaremos
A voz dos que gritam
Por justiça.
Nem deixaremos
Com que o grito do opressor
Seja escutado.
Encontre pelo que lutar
E lute.
Falhe se tiver que falhar,
Mas, mude.
O povo que se movimenta
Não fica à sós.
A esperança,
A força,
O desejo
E a vitória se fazem presente
Às mãos de luta.
Levante-se!
Erga-se!
Teus joelhos não
Foram feitos para
O chão.
O chão,
Meus amigos,
São para os perdedores
Para nós,
As estrelas
E a vitória.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Que é para não ver o sangue escorrer de nossa foice.
O sangue que correu pelas veias
Dos que gritaram contra o povo
Já não mais corre.
Calem a boca!
Que é para não gritarem quando,
Em silêncio,
Quisermos passar.
Ergam seus braços!
Porque precisamos saber
Quem é de luta, e quem não.
Se tentarem queimar nossas bandeiras,
Faremos com que o fogo
Engula vossas carnes.
Quando o sol se pôr,
Lembraremos dos rostos
Que choraram de desespero.
Faremos com que
Os nomes dos valentes
Sejam gritados.
E os dos fracos,
Esquecidos.
Jamais calaremos
A voz dos que gritam
Por justiça.
Nem deixaremos
Com que o grito do opressor
Seja escutado.
Encontre pelo que lutar
E lute.
Falhe se tiver que falhar,
Mas, mude.
O povo que se movimenta
Não fica à sós.
A esperança,
A força,
O desejo
E a vitória se fazem presente
Às mãos de luta.
Levante-se!
Erga-se!
Teus joelhos não
Foram feitos para
O chão.
O chão,
Meus amigos,
São para os perdedores
Para nós,
As estrelas
E a vitória.
CLARISSA DAMASCENO MELO
domingo, 7 de julho de 2013
Céu.
Faça o favor de olhar pro céu
Não pelas estrelas,
Ou pela poesia.
Mas por mim,
Quando eu for embora.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Não pelas estrelas,
Ou pela poesia.
Mas por mim,
Quando eu for embora.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sábado, 6 de julho de 2013
Sobre como esquecer um nome.
Não me pertenço. Nem a mim, nem a meu nome. Nem à noite, nem ao dia. Nem à esquina de minha casa, nem à rua em que morarei. Não me pertenço. Nem a mim, nem a meu nome. Ora, se eu não fosse eu, tranquilamente, seria outra. Mas isso me anula? Certa de que sim, certa de que o próprio soletrar de meu nome já é capaz de me anular, escrevo.
Não me limitarei a definir a epifania que me sobreveio depois de ontem. Depois de ontem é o hoje que renasce assim que, antes de amanhecer, já existe uma manhã. É estranho como amanheci cheia de certeza, cheia de fatos concretos, cheia de exclamações e explicação para tudo. Prefiro a curva das interrogações. Imagine o movimentar de olhos que seguem, atentos, o concretizar das curvas. Eu sou tais olhos.
Amanheci. E isso já deveria me bastar. Bastaria. Resolveria. Desafiaria. (Exclamação!!!) Amanheci tendo certeza de que minha pele combina com o tom enigmático e místico do azul. Certeza tive, também, que meus cabelos ficariam melhores se presos num rabo de cavalo alto, para que as pontas dele pudessem balançar acima dos meus ombros. Soletrei meu nome. Ele já havia sido eu antes mesmo que eu pudesse existir. Antes de me jogarem para fora. Tendo a certeza disso também, parti: toda azul, meu cabelo balançava acima de meus ombros.
Já tentou atravessar a rua olhando para cima? A sensação perigosa de não saber tudo aquilo que lhe vem dos dois lados. Nem da esquerda, nem da direita. De lugar algum. Assim é viver. Atravessei a rua para chegar à clínica. Exames de rotina. Não olhei para cima: antes do risco existe o medo. Assim também é a vida.
Encostei no balcão. Um 'bom dia' gritado, quase que parido, e um sorriso azul. A moça do balcão sorriu de volta e perguntou meu nome. Ali, ela quebrava minhas pernas. Desfazia as curvas satisfatórias do conforto que uma interrogação me impõe. Conforto pronto, empacotado, comerciável. Tão esgotável que, ali, troquei todas as certezas que me cercavam por apenas uma: É impossível saber meu nome.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sábado, 29 de junho de 2013
Dizagem besta.
Ouvi dizer - de dizagem besta,
Que tu chegarias.
Foi-se anos
Imaginando
O seu chegar.
Você não chegou.
E agora - em dizagem besta,
Eu digo que se vens, não venha:
Fique onde está.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Que tu chegarias.
Foi-se anos
Imaginando
O seu chegar.
Você não chegou.
E agora - em dizagem besta,
Eu digo que se vens, não venha:
Fique onde está.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quarta-feira, 26 de junho de 2013
Sobre por onde anda o coração.
Ninguém erguerá muros
Diante de meu povo
Sem que meu povo
Erga braços para derrubá-lo.
Ninguém impedirá
Os caminhos livres de meu povo
Nem barrará teus passos
Diante de meus olhos.
Não destruirão
Qualquer segundo de luta
Por que lutar é eterno
E só por isso meu povo não morre.
Nenhum com ideias doentes passará,
Pois cortaremos teus pés.
Nossos braços possuem aço,
Nossos olhos, o escarlate que escorre
Dos joelhos,
Das mãos,
Da fumaça das máquinas.
Tão só por isso,
Uma cor de sangue:
Vermelho.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Diante de meu povo
Sem que meu povo
Erga braços para derrubá-lo.
Ninguém impedirá
Os caminhos livres de meu povo
Nem barrará teus passos
Diante de meus olhos.
Não destruirão
Qualquer segundo de luta
Por que lutar é eterno
E só por isso meu povo não morre.
Nenhum com ideias doentes passará,
Pois cortaremos teus pés.
Nossos braços possuem aço,
Nossos olhos, o escarlate que escorre
Dos joelhos,
Das mãos,
Da fumaça das máquinas.
Tão só por isso,
Uma cor de sangue:
Vermelho.
CLARISSA DAMASCENO MELO
domingo, 9 de junho de 2013
Sou feita de barro.
Peço licença
Com a boca entreaberta
Que é para não incomodar
Essa gente que grita alto
Mas que não sabe gritar.
Estou ausente de meus olhos
Eles se desmontam de mim
Por pena.
Eu não preciso ver a porta entreaberta
Que me leva para o mundo
Que se esconde do lado de fora.
Meus olhos saltaram de mim,
Mas minhas mãos estão aqui, quentes,
Jogadas na inércia pura do devir.
Ora, ora, companheira, o mundo muda,
O mundo voa,
O mundo se transborda,
Mas não sai de si.
Eis de saber que meus olhos
Estão voltando para mim,
Estão rolando no chão de barro,
No barro dessa gente montada por mãos de Deus.
Eu sou barro puro,
Mas meus olhos...
Eles foram feitos de aço.
Rodopiem!
Sambem!
Não os verei à meia noite
Quando a explosão da pólvora
Rebobinar os anos de chumbo
Da bandeira amarela e verde.
A meia noite não chegará jamais
Para meus olhos de aço
Por que meu barro é vermelho
E pinga.
Gota por gota, colorir o Brasil.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Com a boca entreaberta
Que é para não incomodar
Essa gente que grita alto
Mas que não sabe gritar.
Estou ausente de meus olhos
Eles se desmontam de mim
Por pena.
Eu não preciso ver a porta entreaberta
Que me leva para o mundo
Que se esconde do lado de fora.
Meus olhos saltaram de mim,
Mas minhas mãos estão aqui, quentes,
Jogadas na inércia pura do devir.
Ora, ora, companheira, o mundo muda,
O mundo voa,
O mundo se transborda,
Mas não sai de si.
Eis de saber que meus olhos
Estão voltando para mim,
Estão rolando no chão de barro,
No barro dessa gente montada por mãos de Deus.
Eu sou barro puro,
Mas meus olhos...
Eles foram feitos de aço.
Rodopiem!
Sambem!
Não os verei à meia noite
Quando a explosão da pólvora
Rebobinar os anos de chumbo
Da bandeira amarela e verde.
A meia noite não chegará jamais
Para meus olhos de aço
Por que meu barro é vermelho
E pinga.
Gota por gota, colorir o Brasil.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sexta-feira, 31 de maio de 2013
MARIA NÃO OLHA IV
Talvez os dias tenham sido
feitos para chegar e ir embora. Talvez tenham sido feitos para que nem cheguem,
ou para que só cheguem e nada mais. Talvez os dias tenham sido feitos para
trazer alguma coisa ou tirar. Talvez os dias cheguem para nos lembrar de algo
importante, ou dizer, simplesmente, em seu silêncio, que importância não
existe. Aprenda, meu bom, que os dias nem completam nossa existência, nem nos
fere. Às vezes, os dias se limitam a serem dias e só.
Maria era aquela mulher
comum. Não possuía nada que lhe preenchesse as veias e o sangue. Era só ela e
era apenas o que poderia ser. Seus filhos não eram seus e estavam distantes.
Não se olhavam nos olhos e nem se sabiam olhar. Os vidros dos quartos dividiam
a alma de Maria. Seu marido se fora. Seus sonhos morreram. Seus dias, escassos
de luz, eram dias e nada mais. Em seu trabalho, Maria tomava café em copos
plásticos. Encostava a boca em plástico duro e mal sabia que aquele plástico
também a era. Obtusa em existência, oca de alma, perdida dos sonhos, a menina
Maria morrera para que a mulher se pusesse viva. A morte de uma criança é a
morte mais triste que tem.
Maria saiu do trabalho em um
sábado à tarde. O dia estava quente e as pessoas corriam. Sabe, leitor? Corrida
besta. Corre-corre de rua. Coisa de gente cujo destino é limitado. Maria corria
em seu destino limitado. Atravessava as ruas, ultrapassava o sinal, mergulhava
em uma pressa insana e inconsciente. Corria para todos os lados, mas mal sabia
para onde iria. Chegar em casa? Isso é bobagem. Ninguém chega em casa. Enquanto
a alma não pausar em descanso tranquilo, e enquanto o descanso não for de
prazer, ninguém chegou em casa. Maria não tinha casa. Ela só tinha uma porta,
seus filhos, um quarto e só. Maria não tinha casa.
Em toda a sua vida,
obedeceu. Seus pais disseram: fará faculdade de administração. Maria fez. Fez,
formou-se, trabalhou. Maria não olhava para trás e é por isso que Maria é
especial. Repito seu nome de propósito. É gostoso dizer Maria. Maria. Ma. Ria.
Mar. Ia. Maria. É quase uma música. É gostoso falar Maria. Mar nosso de cada
dia, traga o peixe, traga a festa, traga Maria. Maria não tragou. Maria
perdeu-se no vento de sua própria vida e fez-se de um jeito errado
indescritível. Defenda-a da próxima vez em que eu chama-la de obtusa. Maria não
era obtusa. Maria era Maria. Sua consciência doente não lhe permitira ser outra
coisa além de. Maria só poderia ser Maria, ora.
Mas Maria, naquele dia,
acordou diferente. Havia uma felicidade escondida nos olhos, cujas pálpebras,
doentes, pendiam inertes. Havia ali dentro de suas duas pedras negras, uma
sombra de felicidade plena. Arrumou-se em sua rapidez definitiva e partiu.
Calçada em sapatos apertados por conveniência, caminhou pelo chão de taco do
escritório. Bebeu café em copo plástico. Inteirou-se da vida metalizada a que
nascera predestinada ser.
Foi inteiramente Maria o dia
inteiro. Mas, atrás de seus olhos, escondida em sombras, a felicidade de Maria
explodia. Havia ali uma chuva de fogos de artifício que estouravam em um céu
aberto. Não vos digo, leitor, ser essa explosão algum tipo escondido de
epifania. Talvez fosse o tempo chamando Maria de volta. Ou fosse Maria alguém
que sempre escondeu essa felicidade atrás dos olhos. Os olhos negros, mortos,
inanimados de Maria.
A explosão surgia atrás dos
olhos, descia-lhe a face internamente, atravessava a garganta e morria ali,
antes de ser gritada. Maria não gostava de gritar. Sentiu o vazio que sentia
sempre toda vez que abandonava o escritório. O vazio mecânico já era dela por
que ela era parte adjacente de seu escritório. Quando este fechava as portas,
Maria se fechava junto. Ia pra casa pensando sempre no dia seguinte, na hora
exata de fazer voltar seu coração bater.
A urgência de Maria, no
entanto, era outra. Estranhamente, ela sentiu a necessidade incômoda e mortal
de abraçar seus filhos. Quis ir ver a exposição de artes plásticas. Quis tomar
sorvete de tamarindo com calda de limão. Quis atravessar a rua de braços
abertos, tomar banho de chuva, escorregar no chão molhado. Quis, Maria, olhar
as estrelas quando a noite caísse e ninar seus filhos para que estes pudessem
dormir. Maria havia acordado estranha. Os olhos negros eram os mesmos, mas
aquela não era Maria.
Mar, doce mar, traga peixe,
traga sal, traga amor, traga Maria. Maria não tragou. Fechou o escritório. O
coração em chama acesa, quase imperceptível aos olhos dos humanos-maria que
passavam pela calçada. Guardou as chaves na bolsa e apressou o passo. Hoje
faria lasanha. Esqueceria a dieta fascista que adotou para ela e para os
filhos. Maria queria esquecer a existência de seu antigo marido. Juntou toda a
pieguice no peito e caminhou, caminhou, correu. Meteu-se a atravessar a rua.
- MARIA! – Gritou alguém.
- MARIA! – Tornou a gritar.
Maria não olhou para trás.
Maria não poderia olhar para trás. Ela nunca olha. A vida segue em linha reta e
olhar para trás Maria não sabia. Maria não olhou. Alguém gritou Maria, mas
Maria não olhou a voz que lhe queria avisar que um carro corria.
O carro cortou a vida de
Maria.
CLARISSA DAMASCENO MELO
domingo, 26 de maio de 2013
Verônica.
A Lua anda pelo Céu,
Por cima da casa,
Atenta.
Ela canta:
Canção de ninar.
A assobio é sentido pela cidade
Enquanto os pássaros, coloridos
Batem asas sobre o quarto.
"Toda vez que uma criança
Diz não acreditar em fadas,
Uma fada cai morta em algum lugar."
Mas toda vez
Que a menina de laço vermelho
Abre os lábios para sorrir,
Uma legião delas se levanta.
Não tema a escuridão da noite,
Ela tem a cor dos teus cabelos.
A noite flui silenciosa,
E quando amanhece
É poesia.
Não tenho dúvidas:
Quando o céu está azul,
É Verônica que está sorrindo.
À ti, Verônica Mírian
CLARISSA DAMASCENO MELO
Por cima da casa,
Atenta.
Ela canta:
Canção de ninar.
A assobio é sentido pela cidade
Enquanto os pássaros, coloridos
Batem asas sobre o quarto.
"Toda vez que uma criança
Diz não acreditar em fadas,
Uma fada cai morta em algum lugar."
Mas toda vez
Que a menina de laço vermelho
Abre os lábios para sorrir,
Uma legião delas se levanta.
Não tema a escuridão da noite,
Ela tem a cor dos teus cabelos.
A noite flui silenciosa,
E quando amanhece
É poesia.
Não tenho dúvidas:
Quando o céu está azul,
É Verônica que está sorrindo.
À ti, Verônica Mírian
CLARISSA DAMASCENO MELO
sábado, 25 de maio de 2013
Tenho Medo II
Não tenho medo
Que um dilúvio
Parta a minha rua em dois pedaços.
Tenho medo de atravessá-la,
Crua...
E não me parar em teus braços.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Que um dilúvio
Parta a minha rua em dois pedaços.
Tenho medo de atravessá-la,
Crua...
E não me parar em teus braços.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Tenho Medo I
Eu tenho medo.
Não que o mundo não mude.
Não de um tiro na garganta.
Não de uma rua deserta.
Tenho medo de que meus braços
Não possam crescer
Além.
Que eles se atrofiem
E se percam
No não-caminho ao fim.
Eu tenho medo.
Não das madrugadas.
Não dos caminhos escuros.
Não das gritarias.
Tenho medo de que meus pés
Sejam obedientes ao destino.
Tenho medo.
Não das sentenças,
Das desconfianças
Das limitações...
Meu medo é tão interno,
Tão opaco e profundo...
Que é medo de ser
O que já me tornei.
CLARISSA DAMASCENO MELO.
domingo, 28 de abril de 2013
Mudar o mundo.
Meu oco
É o velho
Não tilintar de voz.
Ou muda o mundo,
Ou eu morro à sós.
CLARISSA DAMASCENO MELO
É o velho
Não tilintar de voz.
Ou muda o mundo,
Ou eu morro à sós.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Atravessar a rua II
Segure meu braço
E deixe que minhas mãos
Se apoiem em seus ombros.
Esqueci como é que se faz
Para atravessar a rua
Sozinha.
CLARISSA DAMASCENO MELO
E deixe que minhas mãos
Se apoiem em seus ombros.
Esqueci como é que se faz
Para atravessar a rua
Sozinha.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sábado, 27 de abril de 2013
Decreto.
Decreto o final da poesia saudosista,
Da poesia doente,
E que seus poetas morram!
Decreto o fim da bestialidade humana
Mas que todo ser humano besta
Sobreviva.
Decreto que o próximo seja amado
Mas não mais que amado
Que o umbigo.
Mas que todo umbigo
Continue sendo menor
Do tamanho que já é.
Decreto que as meninas
Cubram suas bocas
Com balas de café
E que os meninos
Aceitem balas de café
Chupadas
E que palavras nossas
Sejam palavras nossas.
Decreto que ninguém deve sentir
Como se não pudesse sentir
E que sinta como achar
Que o sentir lhe faz sentido,
Sem que seu sentido seja marcha de palhaço.
Decreto o fim das linhas
Que se entortam e
Morrem.
Decreto, aliás,
Minha imortalidade.
Quem nasceu para escrever
Não morre.
Decreto que o teto
De todos os quartos
De todas as crianças,
Seja azul.
Seja azul para que
Todas as crianças de
Todos os quartos
Possam, ainda, acreditar
Que existe azul no Céu
Embora uma escala cinza lhe seja erguida
Em olhos.
Decreto o fim - para sempre -
Daquelas palavras
Que não foram ouvidas.
Decreto que não haja
Uma forma sequer de sussurro.
Palavras foram feitas
Para que alguém
As grite!
Decreto o fim
Dos dilemas caóticos
Do povo sem coração.
Decreto morte
Aos sentimentos maus.
E vida, decreto vida,
Àqueles que nos fazem
Sonhar à noite.
E, no mais,
Decreto que meus decretos
Não sejam leis - estas não servem,
Estas são feias.
E se meu decreto for lido
Em alta voz,
Que seja lido
Por uma criança
Que acredita em fadas.
Decreto final:
Nenhuma palavra deve machucar.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Da poesia doente,
E que seus poetas morram!
Decreto o fim da bestialidade humana
Mas que todo ser humano besta
Sobreviva.
Decreto que o próximo seja amado
Mas não mais que amado
Que o umbigo.
Mas que todo umbigo
Continue sendo menor
Do tamanho que já é.
Decreto que as meninas
Cubram suas bocas
Com balas de café
E que os meninos
Aceitem balas de café
Chupadas
E que palavras nossas
Sejam palavras nossas.
Decreto que ninguém deve sentir
Como se não pudesse sentir
E que sinta como achar
Que o sentir lhe faz sentido,
Sem que seu sentido seja marcha de palhaço.
Decreto o fim das linhas
Que se entortam e
Morrem.
Decreto, aliás,
Minha imortalidade.
Quem nasceu para escrever
Não morre.
Decreto que o teto
De todos os quartos
De todas as crianças,
Seja azul.
Seja azul para que
Todas as crianças de
Todos os quartos
Possam, ainda, acreditar
Que existe azul no Céu
Embora uma escala cinza lhe seja erguida
Em olhos.
Decreto o fim - para sempre -
Daquelas palavras
Que não foram ouvidas.
Decreto que não haja
Uma forma sequer de sussurro.
Palavras foram feitas
Para que alguém
As grite!
Decreto o fim
Dos dilemas caóticos
Do povo sem coração.
Decreto morte
Aos sentimentos maus.
E vida, decreto vida,
Àqueles que nos fazem
Sonhar à noite.
E, no mais,
Decreto que meus decretos
Não sejam leis - estas não servem,
Estas são feias.
E se meu decreto for lido
Em alta voz,
Que seja lido
Por uma criança
Que acredita em fadas.
Decreto final:
Nenhuma palavra deve machucar.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Esquina.
Na esquina,
Um senhor fechava a loja de brinquedos
Uma criança enfiava dedos na boca
Uma mulher, carregava um filho
Um filho, carregava uma mãe.
Na esquina,
Ali, na beirada da rua,
Uma menina fugia de casa,
Uma senhora gritava,
E ninguém olhou para trás.
Na esquina,
Mascaram uma bala de goma
Engoliram saliva doce
Artificial.
Na esquina,
Um cão fora atropelado
E uma mão de menina correu o rosto
Que chorava.
A esquina abrigava o mundo,
Mas todo mundo acaba.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Um senhor fechava a loja de brinquedos
Uma criança enfiava dedos na boca
Uma mulher, carregava um filho
Um filho, carregava uma mãe.
Na esquina,
Ali, na beirada da rua,
Uma menina fugia de casa,
Uma senhora gritava,
E ninguém olhou para trás.
Na esquina,
Mascaram uma bala de goma
Engoliram saliva doce
Artificial.
Na esquina,
Um cão fora atropelado
E uma mão de menina correu o rosto
Que chorava.
A esquina abrigava o mundo,
Mas todo mundo acaba.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Moleque sujo.
Chovia.
A noite começara pelo canto de tua boca e escorregou, inerte, por ali, pelas beiradas. A noite era líquida, bebível e escura. Quantas horas se passaram desde que ela aprendera a beber a noite? Não fazia ideia. Não esperou que lhe chamassem para dormir, estava esquecida. No canto da boca, por onde a noite passara, umas poucas palavras escorregavam escapulentas. Junto às palavras, gotículas de olhos, salgadas, morrendo ali. Já não sabia se era a chuva curvulenta de seus neologismos próprios, ou se era a água salgada que escorria à noite, sempre à noite, quando ia se deitar e lembrava do passado.
Cuidado com o passado.
Ele é um moleque sujo
Que vem nos agarrar de vez em quando.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sexta-feira, 12 de abril de 2013
Fugiu.
A inspiração foge
E deixa, no lugar,
Um pano translúcido
Que não sabe
Mostrar nada.
CLARISSA DAMASCENO MELO
E deixa, no lugar,
Um pano translúcido
Que não sabe
Mostrar nada.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quarta-feira, 3 de abril de 2013
Filho-de-rua.
Ninguém viu,
Mas virou a esquina,
Sobre pés descalços,
Um menino filho-de-rua.
CLARISSA DAMASCENO MELO
segunda-feira, 1 de abril de 2013
Se é noite.
A
noite, quanto mais escura, quanto mais profunda, quanto mais noite seja; me é
capaz de absorver, lento-absurdamente, em seu viés criativo-produtivo. Não, não
digo, pois, que escrevo meu escrever em noites e somente em noites; mas o sabor
turvo da escuridão faz-me parecer menos eu e mais meu ego violento que em mim
habita e não se mostra. Sem pieguice, a noite traz conforto extra às palavras
tais quais estas, que de tão desconfortáveis e confusas, mais parecem
justificativa que qualquer outra coisa.
É
noite, das que as estrelas, de tão cansadas por estarem onde estão, fazem-se
tímidas por detrás das nuvens. Nem mesmo os grilos, nem as rãs, nem os
bichos-noite, são capazes de, lá fora, me fazerem acreditar que ali eles estão.
Nem eu, nessa noite, estou querendo fazer de minha existência, fato concreto.
Eis o motivo tal que faz as palavras que vos descrevo serem singelas de todo
seu modo. Não há agonias em minhas palavras, nem encruzilhadas sem respostas.
Há somente palavras.
Acusaram-me
de labirintar minhas informações. Defendo-me: Não as labirinto; as edifico em
diagonal. Há defeito meu, confesso, no ato próprio do contar história; as horas
antes que se passam antes do começar a acontecer. Peço desculpas pelos grãos de
desaprovação que planto logo no início de cada texto e justifico-me: não sei,
diferente, fazer. E se te evoco, leitor, é, pois, que eu te quero atento.
Dialogue comigo quando fores me conhecer. Ando livre de tempo e necessitada de
prosear além das cruas vias conhecidas.
A
noite, lá fora, é noite doida-escura dos sem o que fazer. Noite que parece
calda quente, jogada em lentas curvas num lençol, ora azul, ora ela própria. Há
algo nela que me põe, inquieta, a comparar-me eu e ela. O silêncio que
incomoda. O abismo que incomoda. A incógnita que incomoda. A solidão tão sólida
quanto gelo bruto que se bota a derreter, vez por outra, por praticidade ou
ação exterior. Nenhum superlativo para nós. Somos, como dizem e digo, eu,
agora, coisa de um mesmo fundo poço.
Lá
fora, leitor, o silêncio é tão concreto e tão concreto é a ponto de deixar,
aqui por dentro, para nós, iscas tais que uso na pesca de inspirações perdidas.
No leve estranhar de mim, lembranças. O vento que ecoa e vibra faz com que eu me
lembre das vibrações internas e incontroláveis, sem com que, no entanto, me
afete exteriormente. Faz com que eu me lembre, dentre todas as outras coisas
que também me lembro, a intransitividade das vibrações tais quais esta que
sinto no simples fato do lembrar.
E,
não somente o vento, mas o borbulhar de folhas que se encrespam em si mesmas, a
festa do barulho-líquido que escuto, aqui de dentro, a quebrar o silêncio
doloroso para, em troca, presentear a natureza com barulho miúdo que, de tão
desconfortável, torna-se essencial. Até o cair de folhas é incômodo bruto e,
logo mais, torna-se música. Um pequeno tilintar anti-romântico de festas sobre
coisas que caem. Folhas caem. Chuva cai. Estrela cai. E, se tu duvidas, não
duvide; vez por outra, pessoas caem também.
Meu
fervilhar de consciência, pseudo-adormecido durante o dia, à noite, é capaz de
fazer-me coisas absurdamente tristes, absurdamente alegres. Essa bipolaridade,
no entanto, bifurca consequências que, em suma, dão-se ao mesmo tempo e sem
diagonais, solidamente a fazerem-me inteira. Não serão, julgueis agora, o
resultado primordial? Essa quimera que nos completa não é, senão, lado dia e
lado noite? O que estou querendo dizer, no entanto, é que meu lado noite é
composto ainda por outras tantas quimeras bipolares que, no fim, nem mesmo sei
por quantas partes me construíram.
Por
algum motivo, a noite cai. E que, nesse momento, os físico-químico-biólogos
fiquem permanentemente em silêncio. Não quero ciência capaz de me explicar a
frequência noturna da escuridão. Só quero entender a noite de forma
poético-lírica. Se eu disser que a escuridão é fruto de pedido meu para treinar
minhas vistas quando dia for, por favor, cientistas, silenciem. A noite cai
porque, dentro de todos os outros fatores, existe um pedido meu. Caia noite,
dê-me vida.
Quando
é dia, e me ponho a caminhar pelas ruas de qualquer cidade, vejo coisas que, se
fosse noite, eu não veria. Um menino de boca aberta me pede moeda e não as
tenho... Perceba que, se fosse noite, eu não o veria. Quando é dia, eu vejo
prédios diante de mim e, no entanto, não vejo o que eles escondem atrás de todo
o cimento; se fosse noite, a culpa seria dela. Caminho dentro dos carros
engarrafados e me atraso diante de um fator que foi criado para não me fazer
atrasada. Se fosse noite, e agora eu me sinto exausta e crua, eu caminharia
fora dos carros e ainda me sentiria dentro deles; no entanto, seria noite e
acabo aqui minhas reclamações.
A
noite, leitor, me serve para me fazer criar desculpas grandes. Desculpai-me
pelo meu silêncio sólido. Desculpai-me pelas palavras enérgico-amargas.
Desculpai-me pelo desprazer de me vestir de mim logo cedo de manhã, mas, no
entanto, fazer-me outra aparecer, outras, que também me sou. Desculpai os
grandes períodos, os grandes parágrafos. Minha falta de técnica é, talvez,
maior que minha necessidade de escrever.
E
se minhas desculpas pareceram-lhe poucas ou frias ou escassas de tudo, perdoai,
também. Ultimamente, tenho sonhado o dobro. Mas, à noite, o sonho me vem
encrespado com o conforto que nem sequer é meu. Imagineis: eu, pobre de juízo,
deitada por sobre caldo quente, a imaginar os dias depois destes que me
invadem! Que loucura! Se me embargo a sonhar, agora, entenda, é o fator-noite
agindo em mim.
Certa
vez, vou lhes contar com precisão, em uma aula qualquer, pediram-me para
escrever um parágrafo. A estranheza desse fato é por ele pertencer a um tempo
outrora sonhado que, agora, por ser sólido-carne, não tem tanta importância.
Escrevi e achei o parágrafo o mais bonito do mundo. Muitas letras; meus verbos,
conjugados em amor maior, choviam e faiscavam. Mas eis que disseram dele coisas
que me encresparam o rosto. Meu júbilo era fracassado, então, eu também o era.
Em
contra ponto, noites e mais noites antes desse fato, quando o fato desse fato
ainda era um fato a ser sonhado em outros fatos, eu escrevi outro parágrafo sem
que me pedissem. Era horroroso: muita técnica, pouca liberdade. Meus verbos não
eram meus, nem tampouco, as vogais maiúsculo-minúsculas. Sossegue:
abrilhantaram-no. Concluí, agora, porque me embaraço a dizer de minha técnica?
Fato é que, durante o dia, só sirvo se eu estiver condicionada a outros tempos.
Só faço questão de me ser, no entanto, quando e por quanto eu for julgada para
baixo. Só eu sei a resposta.
A
noite é a resposta: ela é quem me faz o labutar mais doce-quente. Sem ela,
talvez, eu me dedicasse a ver e sentir outras coisas subjacentes e
deselegantes. Talvez eu me enfiasse em livros técnicos demais, ou me fizesse
nula diante de pensamentos meus. O dia é cheio demais e eu não caibo por dentro
dele. Ele me excomungou no dia mesmo em que resolvi nascer à noite. Veja você:
e ainda dizem que a noite é traiçoeira!
Durante
o dia, eu saio às ruas vestida de trajes limpos e escassos, passo pelas
esquinas em que, à noite, trabalham elas que não usam roupas. Quando é dia. Eu
vejo a bala atravessar a garganta do bandido-morto. Por quanto mais a luz
brilha seu brilhar diante da terra, eu vejo crianças sendo enxotadas de suas
casas para irem trabalhar à força, eu vejo mulheres apanhando, eu vejo a
escassez de água, eu vejo o descaso, eu vejo meus vejos e vejo a omissão.
Sinto-me no dever de, quando ser noite, cuspir pra fora todo o escopo absorvido
à luz do dia. Queridos, a noite é minha justiça. Sem ela, não há prazer.
CLARISSA
DAMASCENO MELO
Coisa de olho sem brilho.
Se me perguntarem o motivo de minha tristeza, talvez eu responda assim:
- Os olhos, os olhos perderam o brilho.
CLARISSA DAMASCENO MELO
- Os olhos, os olhos perderam o brilho.
CLARISSA DAMASCENO MELO
segunda-feira, 25 de março de 2013
Sobre você ou sobre o que você acredita acreditar.
Que a verdade, senhor, seja
dita: não pareço eu mesma no instante em que nasço de manhã; nem me
reconheceria na imagem de um espelho caso este me ficasse à frente logo quando
anoitece. Não que eu me seja muitas ou me seja, vais presumir, protótipo de diversidade.
Sou estranha a mim e, mesmo você, que me lê, não me reconheceria. Dirá: ué, tu
não escreves aquilo que é teu? Como aquilo que é teu não pode ser você?
De certo, confirmo, digo e
morro a dizer que cada linha minha é nascida de mim mesma. São meus contos
universais que somente eu conheço. Não existe fábula inventada que não seja a
verdade de alguém, creia. Mas a questão-quesito é mais imóvel que tu pensas.
Entre o dia e a noite – e essa ideia roubo, eu, agora, do Shakespeare -, existe
mais do que sonha sua vã filosofia.
Então, agora, és capaz de notar? Não sou muitas, nem várias. Eu só me
sou. E eu sou um espelho quebrado que se parte em vários pedaços. Sou uma que
se divide, e então, sou várias. Engula, você, mais esse paradoxo.
Se estiveres a franzir a testa
e a julgar-me cabulosamente, então, leitor, cheguei ao meu ponto máximo de
estupidez; então, cheguei ao fim. Leia-se: se me esgoto a desenganar-te e
fazer-te tu a me debochar e denegrir, ah, cheguei, sim, ao meu final querido.
Não, não despeço-me, pois. Que sirvam de lição os dogmas aprendidos e devorados
que não nos servem para nada. Tu ficaste trancafiado a quatro paredes,
fizeram-te engolir a gramática, os cálculos, as leis da física-inútil-útil, mas
jamais – por favor, creia – fizeram com que você engolisse a si mesmo.
Em sua escola nunca te disseram
que tu eras livre para não estar ali.
Que tu podias sair a passear pelo pátio, beber água no bebedouro de fora
ou, vamos mais longe, pegar suas coisas e ir-se embora para casa ou para a
praça onde passariam aquelas pessoas populares. Não. Fizeram-te acreditar que
tu deverias continuar ali, sentado. Não foi, leitor? E, se em algum momento, tu
puxares da memória que um dia alguém lhe disse isso, favor reconsiderar: se
disseram, foram de uso à psicologia-inversa. Disseram só para que tu não
acreditasses e então estou certa.
Disseram para você que se você
dormisse sem rezar, você teria pesadelos. E mesmo que tu acordasses no meio da
noite dizendo que havias rezado, e se chorasses com medo dos monstros deitados
em sua cama; falar-te-iam para continuar rezando. Não que a reza não te sirva –
e esta serve, mas é que lhe valeria muito mais se te dissessem que você mesmo
poderia levantar-se para acender a luz. É isso: ninguém te ensinou a acender a
luz.
Disseram que você deveria
oferecer sua merenda para o colega do lado, mesmo que este não tenha te
desejado bom dia. Eu, leitor, te alforrio de todas essas leis que te
enquadraram. Se quiseres comer tudo sem oferecer a ninguém, o direito é seu.
Mas faça sabendo que, assim, não és digno de aceitar o que quer que seja de
ninguém. Eis que tiro as grades e ponho as cordas.
Fizeram-te supor que homem não
chora e se tu, que me lê, for homem, digo que, por favor, derrame agora todas
as lágrimas que não te deixaram derramar. Homem chora. Todo homem é, também,
mulher. E se tu és homem, dê-me mãos. As minhas, de moça simples, de
jovem-velha, de menina-mulher, de vadia e de anã, estão soltas. Jazem por aí e
se limitam ao labutar da criação. Mas, se tu que me lê for moça também, dê-me
olhos. Talvez os teus já tenham visto um caminho-sonhado que eu jamais vi. Se
és moça, deixai-me ver caminhos novos.
Fizeram-te crer que teus pés,
embora teus, haveriam de seguir caminhos traçados por outras mãos. Discordo.
Embora os caminhos já tenham traços prontos, eles ainda são teus. E se tu não
errares caminho algum, jamais saberás qual é aquele que lhe escreveram. Na
dúvida, erre todos os passos. Deixe-os marcados na areia da praia, não os deixe
passeando pelo cimento. E mesmo que lhe seja forçado o uso de ternos e de
roupas pesadas, vai assim mergulhar no mar. Não há peso que não resista ao
sal-salgado e à água.
E, agora, comigo, leitor,
julgue: passou a vida inteira acreditando no que lhe fora dito. Se disseram-lhe
sim, imbecilmente, tu dizias sim. Se te negavam, fazias birra por uns segundos
e, logo mais, trocada por doce, calavam a sua boca. Se te fizeram crer que
faria frio se tu não preenchesses teus vazios, tu fizera questão de jogar
dentro de ti qualquer coisa que lhe pusesse em zona de conforto. E foi assim.
Justo. Se é para a morte que se
caminha, por que tu deverias acreditar que todos mentem? Se não souberes
responder, creio que tenhas vivido de forma imbecil. A imbecilidade, embora
doce, lhe deixa vulnerável ao que quer que seja. E agora vou falar sobre aquilo
que nem eu nem você conhecemos. Talvez, a gente faça juízo disso daqui a alguns
segundos, alguns meses, anos, ela é tão certa que é incerta. Se tu sabes que
vais morrer, então, porque ainda continuas a colonizar sentimentos?
Porque tu engarrafas aquilo que
és. Se tu não és peça do tabuleiro que lhe impõem, saia dele! Vamos, leitor.
Saia da sala de aula! Acenda a luz! Engula, sozinho, a sua merenda! Chore!
Caminhe! Erre caminhos! Só, por favor, por você, que um dia verá a morte; nunca
deixai de fazer aquilo que não passa de ser você mesmo porque disseram que de
outra forma seria melhor. Se estás em vida, a vida é sua. Ela é tão tua que tu
a terá mais vezes e não me assusta o fato dela já ter sido tua outras vezes.
Morrer é besteira.
Último pesar: só deixe que lhe calem a boca se o fizerem com um beijo.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quinta-feira, 14 de março de 2013
Solidão.
S
SO
SOL.
SOL
SOLI
SOLID
SOLI
SOL.
SOL
SOLID
SOLIDÃ
SOLIDÃO.
SOLIDÃ
SOLID
SOL
SOLIDÃO.
CLARISSA DAMASCENO MELO
SO
SOL.
SOL
SOLI
SOLID
SOLI
SOL.
SOL
SOLID
SOLIDÃ
SOLIDÃO.
SOLIDÃ
SOLID
SOL
SOLIDÃO.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quarta-feira, 13 de março de 2013
Repensar.
Se,
de um lado, a opressão capitalista insiste em esconder as injustiças causadas
por um sistema que, por sua base, desvaloriza o ser humano frente ao
lucro; do outro existe uma parcela da
população que nada sabe, nada vê. É incrível, mas parece que o Sol anda
escondido pela peneira.
Atrás
dos morros, nas favelas, nos bairros mais pobres e desumanos; estão eles que
representam nada mais que índices cabulosos às autoridades. Eles, que
normalmente são acusados de roubo,
tráfico, prostituição; eles, detentores de armas, de objetos furtados nos
bairros ricos; eles, cheiradores de pó.Os diabos vestidos de prada, que nos
enfiam mãos nos bolsos nossos, parecem-nos menos perigosos que aqueles vindos
das portas dos fundos do Brasil. Parece
que, com uma mão, a justiça acaricia os bandidos vestidos de terno e, com a
outra, envolta à navalhas, dilaceram aqueles que mal sabem por que ou para que
estão no mundo.
Se
um assassino louco sai de casa armado e aponta a cabeça de um cidadão de bem, o
que importa, para a justiça, e para quem o vai condenar, é saber de onde ele
veio. Se saiu da casa de seu pai rico, entrou em um carro importado e passou
por cima de um... Quem se importa? Foi sem querer, não foi? Em pouco tempo,
quando todos esquecerem - e todos se esquecem rápido demais -, ele já poderá
dirigir de novo e estará fora da cadeia. Mas, se uma mãe faminta invade uma
farmácia para roubar, ela será mais uma a encharcar de lágrimas uma cela que já
transborda gente que saiu das portas dos fundos.
O
moleque fedorento, que anda nas ruas a mendigar doce, incomoda. O mendigo que
invade, quase nu, aquele restaurante importante, incomoda. O pedidor de moeda,
incomoda. As mulheres que vendem seus corpos, incomodam. Eles são quem vai
pegar nosso dinheiro para comprar drogas. Eles são quem representam a falta de
segurança das grandes cidades. Eles são eles, e não são nada. Já os
latifundiários, colecionadores de terras produtivas que não produzem,
acumuladores de sacos de dinheiro, que não oferecem empregos, que mutilam
índios, que poluem... Quem são eles? Eles são o progresso, o futuro, a solução,
a mão que nos acaricia e mima. Eles não incomodam ninguém e pecam menos que
aqueles que já nasceram para pecar.
Se,
de um lado, faltam profissionais em bons empregos, do outro, existem centenas
dos chamados trombadinhas que nem sequer souberam ou saberão o real significado
da palavra 'oportunidade'. A oportunidade de não precisar roubar, de deitar na
cama sem que o policial lhe bata à porta para levar-lhe embora, oportunidade de
não ficar pelas calçadas, a passos largos, invadindo pessoas. Oportunidade de
ser ouvido pela sociedade que o julga. Oportunidade de ter defesa diante da
Justiça cega, oportunidade de se fazer e se ser, sem se preocupar com novas ou
antigas leis e, principalmente, a oportunidade de estudar.
O
Brasil, para começar a ser Brasil, precisa descriminalizar a pobreza. Políticas
públicas precisam ser refeitas e repensadas. Repensados, também, precisam ser
os pensamentos daqueles que, mesmo diante dos direitos humanos, defendem a pena
de morte, defendem os policiais que utilizam-se de seu poder para humilhar e
maltratar. Repensados, precisam ser, em verdade, os pensamentos daqueles que se
calam diante das tragédias que presenciam e ajudam a edificar.
CLARISSA DAMASCENO MELO
CLARISSA DAMASCENO MELO
sábado, 9 de março de 2013
Nada chega.
Pois, se dizes, amigo, não acreditar; quem dera eu me fizesse diálogo e, embalsamada na eternidade, fizesse-lhe mudar, sem desenganar-te, aquilo que não mais lhe apetece. Não é, pois me credite, essa ruminação tosca de tudo que já engolistes, que te salvará, em lenta marcha, das tuas lembranças más. Se desacreditas em um passado vosso que lhe fez infeliz, e faz-se - tu próprio, um ser humano triste, creia, amigo, que ruminação nenhuma é o fim e nem o fim, uma ruminação.
Se mal engolistes, não ponhas para fora. Tua pieguice é tão disfarçada de sofrimento, que chego - eu mesma, que nada sou - a entediar-me com tuas labutas. Não. Tu não te faz de forte para enganar-me. Tu queres mesmo é terminar de engolir esse presságio do que és hoje somente para, acredite, no futuro, cuspir. É por isso que nada chega perto de ti.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Se mal engolistes, não ponhas para fora. Tua pieguice é tão disfarçada de sofrimento, que chego - eu mesma, que nada sou - a entediar-me com tuas labutas. Não. Tu não te faz de forte para enganar-me. Tu queres mesmo é terminar de engolir esse presságio do que és hoje somente para, acredite, no futuro, cuspir. É por isso que nada chega perto de ti.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quarta-feira, 6 de março de 2013
Amor.
Cresceu com o bico retorcido na
boca, que só andava torta. Lá, na rua debaixo, conheceu um amor, mas foi amor
intransitivo e, então, fez questão de secar o peito. Diacho! Foi choro pra mais
de dia, e foi aí que a boca ficou torta de vez. Seus anos passaram por ela que
ela nem se deu o trabalho de deixar o tempo envelhecer a carne. Talvez já tenha
nascido velha, com uns três dedinhos de galinha em cada olho.
Sem amor e sem mais lágrima
para derramar, deixou-se fazer coque nos cabelos brancos, enquanto os óculos,
redondos e pequenos – feito ela, desciam escorrego até a ponta do nariz. Quando
espirrava, balançava o corpo inteiro, a garganta dilatava e, para fora, uma
massa dura, embebida de sangue, fazia seus olhos arregalarem em conjunto com a
boca: valha Deus! Bem, leitor amigo, não faço ideia do que seria a massa, mas,
anos depois, com necropsia da pseudo-ciência, descobriu-se que a velha não
tinha coração. Em conjunto, leitor, comigo, raciocine: se a massa era dura, mas
ainda tinha sangue, era o coração da velha! Tire sua conclusão sem se importar
com minhas divagações. Talvez sim, talvez não. Mas, se teu coração endurece,
até de ti ele desiste. E vais cuspir ele, todos os dias, pedaço por pedaço. Até
seu sangue rola junto.
Quando completou oitenta anos,
os olhos, colados de idade cansada, descobriram-se em branca neve a não deixa-la
enxergar. A bichinha, sem amor, sem coração; ficou sem olhos. Foi que, em certo
dia, uma moça da vizinhança chegou com uma caixa em mãos. Dentro, dois gatos
miúdos. “Valha!” Disse a velha “Que diacho de miarada é essa, fulana?!” , “É
miarada pouca, dona moça, é que lá em casa não tem espaço pr’os bichinhos e vim
saber se a senhora não podia ficar com eles uma noite só... uma noitezinha, que
amanhã, logo de manhã, venho buscar de volta” a menina deu dois passos, bateu
os calcanhares, e pôs as canelas para terminar de subir a ladeira, secando a testa
enlameada de suor e pó.
Passou um, dois, três dias e
nada da menina voltar para buscar os gatos. A velha se balançava na cadeira, com os ouvidos entorpecidos no meio dos miados ensurdecedores. Era um infernar de nervos que ela própria era incapaz de
suportar. Os gatos mal comiam, só miavam, só sabiam se lamber e se morder como se moldassem a sociedade que os pariu. Ficavam a pular, de
cadeira para cadeira, o dia todo. E essa situação miserável fazia a velha
gritar dia após dia. Passaram meses, e os gatos, ainda mierentos, faziam da
casa da velha o escambal. Sujavam os tricôs com urina laranja, roubavam comida
do prato, metiam pelo nas roupas escuras, arranhavam as pernas da senhora e,
como não havia visitas, isso ficava por isso mesmo.
Um dia, sentada no pé da cama,
a labutar um terço –assim como lhe ensinara a finada mãe, a velha, que era
cega, sentiu, nos pés, um ronronar suave. Era amor? Se era ou não era; se era
conveniência ou era carentice, ah, como saber? Parou as orações que sabia de
cor, e ficava a repetir sempre a última palavra sem saber pra onde seguir.
Esqueceu até se tinha seguimento. Ora, oração pela metade não leva ninguém pro
céu! Mexia os pés para o bicho se afastar, mas lá estava ele, mudo, a sentir o
pé da velha em seu pescoço. Ódio por
ódio, a velha não sentia, verdade. Era mais uma mágoa doente daquilo que ela já
não podia sentir. E aquele gato, ali,
mudo, a doar-se inteiro à um amor de velha, a reduziu para uma posição
miserável. Ah, era miserável vê-la ali, a ver, sem ver, um amor, um carinho;
era aconchegante, mas havia pregos. Sentir é isso: bifurcação.
Com um rosto virado em
interrogação, fez pressão no peito enquanto uma de suas mãos descia ao chão em
marcha-lenta. Tocou a orelha macia, o pescoço macio e, com as mãos cheias de
dedo, e os dedos cheios de curiosidade, agarrou o gato no colo e disse “ah
pichano!” Ficaram ali, ela e ele, a se conhecer devagar. O outro, vendo a cena,
pulou em seu colo e deixou-se levar ao carinho. Já não importavam os pelos a cair
sem piedade em seu colo. Não. O ronronar era uma declaração de afeto que aquela
velha cega jamais ouviu. Lembrou-se do rapaz da rua debaixo, e de uma certa dor
em chamas que atingiu-lhe o peito. Os dias murchos depois do fato, os olhos
secos, também em chamas, a arder devagarzinho toda uma coisa escondida num
peito que já era incapaz de sentir, embora sentisse todo dia.
A porta bateu. Ah, leitor, eu
me lembro bem daquele dia. Eu estava sentado, de preto, na cadeira ao lado,
fazendo silêncio, a tomar nota de tudo. Descrevo-vos copia fiel dos fatos, e,
embora os fatos sejam curtos ou bastante factuais, são fatos que, em verdade,
existiram. Crer ou não é questão de gosto, mas ter bom gosto de vez em quando
nunca matou ninguém. A velha colocou os gatos de lado e, a labutar, chegou à
porta. Era a menina que deixou os gatos querendo eles de volta na caixa. Ah, a velha deu
um suspiro de susto, outro de tristeza e outro de conformação. O amor não era
para ela mesmo. Viu os bichanos serem jogados numa caixa, e, a miarem, seguir as batidas de calcanhar da menina subindo a ladeira.
terça-feira, 5 de março de 2013
Ela timidez.
Caminhava com a timidez debaixo dos dois braços. Era timidez mórbida, incomodava, levantava exclamações e perguntas. Era timidez aguçada, um silêncio que doía, que fervilhava. Não era só timidez, era não-vontade de falar. Os ombros caíam murchos em suas beiradas. Os olhos, sempre fechados, esperando o dia amanhecer. Ela caminhava com a timidez debaixo dos dois braços, e apertava os braços, sem saber para onde ir...
CLARISSA DAMASCENO MELO
CLARISSA DAMASCENO MELO
Tristeza sem pausa.
Na esquina um menino amarelo espera angustiado o trem das sete horas que periga chegar mas não chega não chega o trem das sete horas que periga chegar não chega não chega esgueirando-se de tudo e da movimentação o menino amarelo espera sozinho o trem das sete horas que periga chegar e não chega o estômago desembrulhado e o trem nem virou a esquina.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sexta-feira, 1 de março de 2013
Quando amanhece, ser noite.
Eu, poeta-fracasso
Me perco na noite
A divagar...
Pois a noite é tão escura
Tão bêbada
Tão ausente de tudo...
Que dá nojo!
Oh, aquele borrão no céu
É bolo de sujeira.
Aquelas estrelas,
Ali jogadas
Estúpidas, todas elas.
Mesmas estrelas vejo
Na pele, jogadas
Quando amanheço.
São minhas marcas de nascença
Minhas estrelas-de-pele
E eu, eu sou o bolo de sujeira.
Eu sou a noite suja
Que cultiva em mim
O-ser-noite-o-dia-inteiro.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Me perco na noite
A divagar...
Pois a noite é tão escura
Tão bêbada
Tão ausente de tudo...
Que dá nojo!
Oh, aquele borrão no céu
É bolo de sujeira.
Aquelas estrelas,
Ali jogadas
Estúpidas, todas elas.
Mesmas estrelas vejo
Na pele, jogadas
Quando amanheço.
São minhas marcas de nascença
Minhas estrelas-de-pele
E eu, eu sou o bolo de sujeira.
Eu sou a noite suja
Que cultiva em mim
O-ser-noite-o-dia-inteiro.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Calda quente.
No meio das encruzilhadas,
Os calcanhares,
Ao se debaterem-se em si,
Acabam por sonorizar
Que vão se debater em outros calcanhares.
Não é lírico, nem é para ser.
Pois que fujo, agora, de toda a romanticidade
Criada nos contos e nas novelas.
Eu fujo dessas linhas,
Por saber que calcanhar ossudo não precisa
De poesia.
Calcanhar ossudo só precisa de outro calcanhar.
A lírica é somente a calda quente.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Os calcanhares,
Ao se debaterem-se em si,
Acabam por sonorizar
Que vão se debater em outros calcanhares.
Não é lírico, nem é para ser.
Pois que fujo, agora, de toda a romanticidade
Criada nos contos e nas novelas.
Eu fujo dessas linhas,
Por saber que calcanhar ossudo não precisa
De poesia.
Calcanhar ossudo só precisa de outro calcanhar.
A lírica é somente a calda quente.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Sobre veias II
Acho que
Magoei a veia
Que me era dilatada
No coração.
Ai, paixão.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Magoei a veia
Que me era dilatada
No coração.
Ai, paixão.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Tempo não é remédio.
Para linhas que não duram,
Para respostas que não saem,
Para amores que não curam,
Para substancias que se subtraem...
Desculpa, isso nem o tempo cura.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
Deixa prender.
Seguram meus pés,
Amarram minhas mãos,
Mas eu deixo...
O que está para matar
Ninguém prende.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Amarram minhas mãos,
Mas eu deixo...
O que está para matar
Ninguém prende.
CLARISSA DAMASCENO MELO
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
Passarinho.
Do portão,
A menina se perguntava
Por que o passarinho voava
E ela não.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sábado, 23 de fevereiro de 2013
Intransitividade.
Obrigada por perdoar as minhas lacunas vazias, e, vez ou outra, preenchê-la com verbos que eu não saberia conjugar. Obrigada pelo telefonema ao final da tarde, pelos cravos vermelhos que me foram entregues ao fim do trabalho, pelos chocolates... Obrigada por todas as palavras amigas que tens me dado, e pelo cuidado que tens para mim. Obrigada pelos chicletes, por amarrar meus cadarços, por olhar a rua antes que eu a atravesse, por abrir a porta do carro e fazer o pedido ao garçom. Obrigada pelos brincos, pelo vinho, pela soberba, pelos adjetivos e por teus olhos.
Mas, principalmente, obrigada por não existir.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Mas, principalmente, obrigada por não existir.
CLARISSA DAMASCENO MELO
sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013
O escrever.
Olhai a moça de choro fácil, olha em teus olhos e tente entender a inundação, inda que prematura seja.
Olhai as vírgulas pausadas em sua vida, e em como, cuidadosamente, ela retira cada uma delas.
Olha em teus cabelos os sinais remotos de uma manhã que não saberia amanhecer;
Olha, em teus cabelos, a pingar, a verdade crua que ela digere e não sabe colocar para fora.
Até seus lábios choram. Vê?
A lágrima goteja em uma chuva lenta, à meio passo,
Inda se forma ali, onde deveria morrer...
São as palavras que, em meio ao enlamear de seu rosto,
Decidem extraviar-se pelos dedos.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Olhai as vírgulas pausadas em sua vida, e em como, cuidadosamente, ela retira cada uma delas.
Olha em teus cabelos os sinais remotos de uma manhã que não saberia amanhecer;
Olha, em teus cabelos, a pingar, a verdade crua que ela digere e não sabe colocar para fora.
Até seus lábios choram. Vê?
A lágrima goteja em uma chuva lenta, à meio passo,
Inda se forma ali, onde deveria morrer...
São as palavras que, em meio ao enlamear de seu rosto,
Decidem extraviar-se pelos dedos.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Por entre orações.
Fizeram-me orar as orações decoradas, enrolaram-me um terço no braço, e disseram-me para balbuciar, conta por conta, os nomes de meus salvadores. Fizeram-me acreditar no inferno, e que eu iria para o Céu, ver meu Senhor, sentado em sua cadeira de ouro, caso, em minhas orações, mencionasse o quanto o amava e temia. Ao passo que, à noite, durante as novenas, eu bloqueava o meu balbuciar e, por dentro de meus dentes, a sair uma risadinha seca, eu pensava o quanto o Céu devia ser chato se toda essa gente que labutava um terço fosse, realmente, para lá.
CLARISSA DAMASCENO MELO
CLARISSA DAMASCENO MELO
Sobre o que mata.
A garganta de nó,
Mãos vazias,
Passado de pó.
O que mata não está por vir,
Já veio.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Mãos vazias,
Passado de pó.
O que mata não está por vir,
Já veio.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Coisa de verbo sem verso.
Encontram-se perdidos,
Sei lá eu onde ou porque,
Os verbos, os eloquentes verbos,
Que não mais aqui estão.
Estão soltos pelas calçadas,
Pelos vácuos de nós,
Pela erudição sombria que quase ninguém entende.
Perdemos os verbos pros versos inatingíveis.
E esta perda é dolorosa.
Pois aqui estou,
Dentro de mim mesma,
A engasgar-me,
Por não saber trilhar as verdadeiras trilhas
Do contar para ser entendida.
Perco-me em mim,
De mim mesma,
Vez ou outra,
A sentir como é
Ser
E ser,
Vez ou outra,
Para ver como é
Sentir.
E sentir, pois então, vos apresento as reticências...
CLARISSA DAMASCENO MELO
Sei lá eu onde ou porque,
Os verbos, os eloquentes verbos,
Que não mais aqui estão.
Estão soltos pelas calçadas,
Pelos vácuos de nós,
Pela erudição sombria que quase ninguém entende.
Perdemos os verbos pros versos inatingíveis.
E esta perda é dolorosa.
Pois aqui estou,
Dentro de mim mesma,
A engasgar-me,
Por não saber trilhar as verdadeiras trilhas
Do contar para ser entendida.
Perco-me em mim,
De mim mesma,
Vez ou outra,
A sentir como é
Ser
E ser,
Vez ou outra,
Para ver como é
Sentir.
E sentir, pois então, vos apresento as reticências...
CLARISSA DAMASCENO MELO
Nada de mim.
Se eu precisar me olhar no espelho,
Esconderei as rugas de minhas mãos,
Meus dedos, olhos, boca, língua, ombros, braços,
Pernas...
E ficarei dias jogando-me a esconder peças que me montam.
Só me olharei no espelho,
Quando não sobrar nada de mim.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Esconderei as rugas de minhas mãos,
Meus dedos, olhos, boca, língua, ombros, braços,
Pernas...
E ficarei dias jogando-me a esconder peças que me montam.
Só me olharei no espelho,
Quando não sobrar nada de mim.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Dedicação.
Só para combinar,
O céu, a me ver na Terra
Decidiu, também, chorar.
CLARISSA DAMASCENO MELO
O céu, a me ver na Terra
Decidiu, também, chorar.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
É Recíproco.
A reciprocidade matou o dengo o doce matou o verso a linha os dois a reciprocidade matou o engarrafamento de pernas a retórica a conjunção a reciprocidade comeu o caminho o verbo a saudade a diagramação engoliu a lírica o relógio o tempo o querer o saber o voto a opinião a máquina de escrever a reciprocidade comeu Drummond Cécília o alfabeto meu inglês a reciprocidade destruiu os sons acabou com a vírgula as pausas as interrupções a reciprocidade perdeu a rima a reciprocidade verteu lágrima verteu mar oceanos décadas milênios um dia uma hora um nome a reciprocidade caminhou por ruas escuras e perdeu-se lenta em cabulosa inanimação e reciprocidade perdeu dedos o viver a imaginação o poema a atmosfera...
E se eu digo, meu doce, que a reciprocidade acabou com tudo,
É porque, meu doce, ela nunca apareceu.
CLARISSA DAMASCENO MELO
E se eu digo, meu doce, que a reciprocidade acabou com tudo,
É porque, meu doce, ela nunca apareceu.
CLARISSA DAMASCENO MELO
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
Verdade.
Deixe-me falar verdades.
Das mais cruas às mais cruéis.
Das não-tuas.
Das universais.
Das desconhecidas
Das mutiladas nos vastos papéis.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Das mais cruas às mais cruéis.
Das não-tuas.
Das universais.
Das desconhecidas
Das mutiladas nos vastos papéis.
CLARISSA DAMASCENO MELO
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
Se chegar, bata a porta.
Quando chegares, bata a porta. - Disse em um assovio - Traga as flores que pedi, as colocarei no jarro, na mesa do jantar de hoje à noite. Não falte. Poli meus melhores pratos para te receber de volta. Tu saístes daqui tão apressado que esqueceu de levar algumas coisas. Esqueceu as chaves de seu carro e do apartamento de sua mãe, esqueceu seu casaco pendurado atrás da porta, esqueceu suas gravatas - aquelas, que eu ajeitava em você pois você nunca foi capaz de dar um nó. Aliás, em que tu fostes capaz? Tu fostes capaz de ir embora sem levar a mim. Mas, já que voltas, entre em casa e bata a porta. Se trouxer flores, traga-as amarelas, penduradas em um buquê. Estás lembrado das minhas flores favoritas?
Farei teu prato favorito. Comprei os peixes. O vinho. Ah, o vinho... E comprei uma toalha nova. Você costumava reclamar da toalha antiga. Lembra-te? Se não lembrar, entendo. Tu reclamavas de tantas coisas... Da pia do banheiro, que deixava a torneira gotejando; do sofá, que fazia um barulho engraçado quando tu se jogavas nele; do chuveiro, que sempre estava ou muito quente ou muito frio; de mim, que não parava de falar nunca. Mas, quando tu cruzastes a porta pela última vez, eu calei a boca.
E, já que voltas, darei espaço para que fales também. Diga-me, como vai a sua nova mulher? Soube que ela é ainda mais magra que eu e tem cabelos lindos. Parabéns. Você conseguiu. Diga-me... Tu dizes para ela que será eterno também? E ela, quando o escuta, está a dobrar tuas blusas como eu fazia? Está a preparar-te o que comer? Está a retribuir-te com um beijo de 'durma bem'? E você, já decorou quais as tuas flores favoritas? Qual a música que ela ouve com mais frequência, querido? Se tu sabes, então ela é melhor que eu. Tu nunca soubestes quem eu era. Ou o que eu fazia. Ou o que eu queria ser. Tu só sabias que, à noite, eu estaria a ler um livro calmo em nossa cama.
Nosso amor sempre foi intransitivo. Nunca precisou correr a casa, nem as escadas, nem em lugar nenhum. Sempre só precisou existir. Mas, como tudo o que existe, acabou-se em uma segunda-feria. Tu dissestes adeus e eu ouvi, emudecida, as palavras tuas. Fiquei sentada, ali, por dias, sabia?
Com o tempo, percebi que as chaves de seu carro não estavam mais sobre a escrivaninha, nem teu casaco, atrás da porta, e eu, eu nunca mais dei nó em gravata alguma. Tu sumistes por completo. Tudo sumiu. O peixe, o vinho... Até a porta está emperrada, sem ninguém entrar. Apenas eu transito entre o dentro e o fora do que um dia foi nosso, do que, um dia, foi feito de nós pra nós. Tu desatasse o nó.
E, agora, olhando em redor... É melhor que tu não venhas. Não. Não venhas. Eu sei que não trará contigo minhas flores favoritas, e sei que dirá que tu não gostas nem de peixe, nem de vinho, nem de mim. Sei que dirás que não existe outra mulher. Não venha. Tu sujarás o meu tapete, como fazia; e o forro do sofá. E me deixará irritada. Dirá que não mudei a toalha da mesa. E achará ruim os pratos que poli. Não. Não venha. Se chegares, finja que não está. Aliás, finja que está. Ver-te inerte me lembra o tempo que foi nosso. Tu sempre fostes inerte.
Mas, se chegares, bata a porta - Disse em um assovio - Não gosto do vento entrando. Aliás, deixe-a aberta. Não. Não chegue. Não. Não chegue.
Tu trará teu filho que não é meu. E ainda me mostrará quão linda é a tua nova mulher. Seu filho vai estar falando as primeiras palavras, mas não saberá meu nome. Não traga ninguém. Não venha. Não traga flores amarelas. Não traga a sua mulher. Não traga seu filho. Eu não comprei vinho. Não comprei uma toalha nova. Está tudo velho. O tempo passou, querido. Mas ainda é ontem. Vais chegar? Se chegar, bata a porta...
Fechou um olho, fechou o outro.
Deitada, tinha as mãos descansadas sobre o peito.
A boca, trêmula, ainda balbuciava na escuridão.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Farei teu prato favorito. Comprei os peixes. O vinho. Ah, o vinho... E comprei uma toalha nova. Você costumava reclamar da toalha antiga. Lembra-te? Se não lembrar, entendo. Tu reclamavas de tantas coisas... Da pia do banheiro, que deixava a torneira gotejando; do sofá, que fazia um barulho engraçado quando tu se jogavas nele; do chuveiro, que sempre estava ou muito quente ou muito frio; de mim, que não parava de falar nunca. Mas, quando tu cruzastes a porta pela última vez, eu calei a boca.
E, já que voltas, darei espaço para que fales também. Diga-me, como vai a sua nova mulher? Soube que ela é ainda mais magra que eu e tem cabelos lindos. Parabéns. Você conseguiu. Diga-me... Tu dizes para ela que será eterno também? E ela, quando o escuta, está a dobrar tuas blusas como eu fazia? Está a preparar-te o que comer? Está a retribuir-te com um beijo de 'durma bem'? E você, já decorou quais as tuas flores favoritas? Qual a música que ela ouve com mais frequência, querido? Se tu sabes, então ela é melhor que eu. Tu nunca soubestes quem eu era. Ou o que eu fazia. Ou o que eu queria ser. Tu só sabias que, à noite, eu estaria a ler um livro calmo em nossa cama.
Nosso amor sempre foi intransitivo. Nunca precisou correr a casa, nem as escadas, nem em lugar nenhum. Sempre só precisou existir. Mas, como tudo o que existe, acabou-se em uma segunda-feria. Tu dissestes adeus e eu ouvi, emudecida, as palavras tuas. Fiquei sentada, ali, por dias, sabia?
Com o tempo, percebi que as chaves de seu carro não estavam mais sobre a escrivaninha, nem teu casaco, atrás da porta, e eu, eu nunca mais dei nó em gravata alguma. Tu sumistes por completo. Tudo sumiu. O peixe, o vinho... Até a porta está emperrada, sem ninguém entrar. Apenas eu transito entre o dentro e o fora do que um dia foi nosso, do que, um dia, foi feito de nós pra nós. Tu desatasse o nó.
E, agora, olhando em redor... É melhor que tu não venhas. Não. Não venhas. Eu sei que não trará contigo minhas flores favoritas, e sei que dirá que tu não gostas nem de peixe, nem de vinho, nem de mim. Sei que dirás que não existe outra mulher. Não venha. Tu sujarás o meu tapete, como fazia; e o forro do sofá. E me deixará irritada. Dirá que não mudei a toalha da mesa. E achará ruim os pratos que poli. Não. Não venha. Se chegares, finja que não está. Aliás, finja que está. Ver-te inerte me lembra o tempo que foi nosso. Tu sempre fostes inerte.
Mas, se chegares, bata a porta - Disse em um assovio - Não gosto do vento entrando. Aliás, deixe-a aberta. Não. Não chegue. Não. Não chegue.
Tu trará teu filho que não é meu. E ainda me mostrará quão linda é a tua nova mulher. Seu filho vai estar falando as primeiras palavras, mas não saberá meu nome. Não traga ninguém. Não venha. Não traga flores amarelas. Não traga a sua mulher. Não traga seu filho. Eu não comprei vinho. Não comprei uma toalha nova. Está tudo velho. O tempo passou, querido. Mas ainda é ontem. Vais chegar? Se chegar, bata a porta...
Fechou um olho, fechou o outro.
Deitada, tinha as mãos descansadas sobre o peito.
A boca, trêmula, ainda balbuciava na escuridão.
CLARISSA DAMASCENO MELO
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