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quarta-feira, 6 de março de 2013

Amor.


Cresceu com o bico retorcido na boca, que só andava torta. Lá, na rua debaixo, conheceu um amor, mas foi amor intransitivo e, então, fez questão de secar o peito. Diacho! Foi choro pra mais de dia, e foi aí que a boca ficou torta de vez. Seus anos passaram por ela que ela nem se deu o trabalho de deixar o tempo envelhecer a carne. Talvez já tenha nascido velha, com uns três dedinhos de galinha em cada olho.
Sem amor e sem mais lágrima para derramar, deixou-se fazer coque nos cabelos brancos, enquanto os óculos, redondos e pequenos – feito ela, desciam escorrego até a ponta do nariz. Quando espirrava, balançava o corpo inteiro, a garganta dilatava e, para fora, uma massa dura, embebida de sangue, fazia seus olhos arregalarem em conjunto com a boca: valha Deus! Bem, leitor amigo, não faço ideia do que seria a massa, mas, anos depois, com necropsia da pseudo-ciência, descobriu-se que a velha não tinha coração. Em conjunto, leitor, comigo, raciocine: se a massa era dura, mas ainda tinha sangue, era o coração da velha! Tire sua conclusão sem se importar com minhas divagações. Talvez sim, talvez não. Mas, se teu coração endurece, até de ti ele desiste. E vais cuspir ele, todos os dias, pedaço por pedaço. Até seu sangue rola junto.
Quando completou oitenta anos, os olhos, colados de idade cansada, descobriram-se em branca neve a não deixa-la enxergar. A bichinha, sem amor, sem coração; ficou sem olhos. Foi que, em certo dia, uma moça da vizinhança chegou com uma caixa em mãos. Dentro, dois gatos miúdos. “Valha!” Disse a velha “Que diacho de miarada é essa, fulana?!” , “É miarada pouca, dona moça, é que lá em casa não tem espaço pr’os bichinhos e vim saber se a senhora não podia ficar com eles uma noite só... uma noitezinha, que amanhã, logo de manhã, venho buscar de volta” a menina deu dois passos, bateu os calcanhares, e pôs as canelas para terminar de subir a ladeira, secando a testa enlameada de suor e pó.
Passou um, dois, três dias e nada da menina voltar para buscar os gatos. A velha se balançava na cadeira, com os ouvidos entorpecidos no meio dos miados ensurdecedores. Era um infernar de nervos que ela própria era incapaz de suportar. Os gatos mal comiam, só miavam, só sabiam se lamber e se morder como se moldassem a sociedade que os pariu. Ficavam a pular, de cadeira para cadeira, o dia todo. E essa situação miserável fazia a velha gritar dia após dia. Passaram meses, e os gatos, ainda mierentos, faziam da casa da velha o escambal. Sujavam os tricôs com urina laranja, roubavam comida do prato, metiam pelo nas roupas escuras, arranhavam as pernas da senhora e, como não havia visitas, isso ficava por isso mesmo.
Um dia, sentada no pé da cama, a labutar um terço –assim como lhe ensinara a finada mãe, a velha, que era cega, sentiu, nos pés, um ronronar suave. Era amor? Se era ou não era; se era conveniência ou era carentice, ah, como saber? Parou as orações que sabia de cor, e ficava a repetir sempre a última palavra sem saber pra onde seguir. Esqueceu até se tinha seguimento. Ora, oração pela metade não leva ninguém pro céu! Mexia os pés para o bicho se afastar, mas lá estava ele, mudo, a sentir o pé da velha em seu pescoço.  Ódio por ódio, a velha não sentia, verdade. Era mais uma mágoa doente daquilo que ela já não podia sentir.  E aquele gato, ali, mudo, a doar-se inteiro à um amor de velha, a reduziu para uma posição miserável. Ah, era miserável vê-la ali, a ver, sem ver, um amor, um carinho; era aconchegante, mas havia pregos. Sentir é isso: bifurcação.
Com um rosto virado em interrogação, fez pressão no peito enquanto uma de suas mãos descia ao chão em marcha-lenta. Tocou a orelha macia, o pescoço macio e, com as mãos cheias de dedo, e os dedos cheios de curiosidade, agarrou o gato no colo e disse “ah pichano!” Ficaram ali, ela e ele, a se conhecer devagar. O outro, vendo a cena, pulou em seu colo e deixou-se levar ao carinho. Já não importavam os pelos a cair sem piedade em seu colo. Não. O ronronar era uma declaração de afeto que aquela velha cega jamais ouviu. Lembrou-se do rapaz da rua debaixo, e de uma certa dor em chamas que atingiu-lhe o peito. Os dias murchos depois do fato, os olhos secos, também em chamas, a arder devagarzinho toda uma coisa escondida num peito que já era incapaz de sentir, embora sentisse todo dia.
A porta bateu. Ah, leitor, eu me lembro bem daquele dia. Eu estava sentado, de preto, na cadeira ao lado, fazendo silêncio, a tomar nota de tudo. Descrevo-vos copia fiel dos fatos, e, embora os fatos sejam curtos ou bastante factuais, são fatos que, em verdade, existiram. Crer ou não é questão de gosto, mas ter bom gosto de vez em quando nunca matou ninguém. A velha colocou os gatos de lado e, a labutar, chegou à porta. Era a menina que deixou os gatos querendo eles de volta na caixa. Ah, a velha deu um suspiro de susto, outro de tristeza e outro de conformação. O amor não era para ela mesmo. Viu os bichanos serem jogados numa caixa, e, a miarem, seguir as batidas de calcanhar da menina subindo a ladeira.

CLARISSA DAMASCENO MELO

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