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sábado, 24 de novembro de 2012

De um desconcerto.

Puxaram uma linha do horizonte.
Puxaram uma linha em síndrome vertical.
Desconstruíram as costuras das fronteiras.
Destruíram as incógnitas.
Fizeram a si.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Lembrar-me-ei.

Vou me lembrar
Da cor do vento
Quando em passos lentos,
Você chegar.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Os garotos.


Os garotos, coxos
Viviam sentados no chão.
As bolas de gude, em suas mãos.
As barrigas redondas
Cheias de farinha, água e ar.
E quando a mãe era questionada,
Respondia que era só isso que tinha para dar.

Não reclamavam da vida.
Se sentiam sede, ou fome, ou frio, ou medo,
Sabiam que isso era vida.
A vida que era deles.
Então, ninguém chorava.

Só à noite,
Quando a mãe chegava sangrando da rua
Os dentes moles, na frente, a falhar
Os ombros roxos de surra, em carne crua.

Aí é que os meninos coxos choravam.
Porque, de raiva,
Também, em cinza, apanhavam.

E choravam, também, quando bêbado,
O pai aparecia.
Entre as mãos, agitava a fivela do cinto,
Entre as mãos, agitava a navalha afiada,
Entre as mãos, faltava carinho,
Entre as mãos, aos filhos, não oferecia nada.

Mas a vida era boa.
Era a vida que se tinha.
Jogavam bolas de gude à toa,
Sentados no passeio da vizinha.

Só que, vindo do céu,
O destino de um deles chegara.
Infeliz é a mão daquele,
Que esse destino, então, traçara.

Ouviu-se as explosões
Que naquela rua chegava.
Eram tiros de ladrões
Que a garganta do menor atravessava.

Gritos.
Gritos.
Gritos.
Gritos.
E mais nada.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Rodopio.


Meus dons existem na toalha molhada
No ônibus lotado
Nas mãos de calos
Nas ruas desertas
Nas mulheres que trabalham nuas
Nos meninos sem carne.

Meus dons existem nos palavrões,
Na vida bruta,
No pressuposto,
E o que é suposto depois do fato.

Minha labuta coexiste com a fome,
A dor
A inércia
E o amanhã.

Meus bens povoam séculos de história perene.
Séculos de eternidade.
Milênios que são contados em segundos.

Eu sou o segundo que conta um milênio.
Nós somos os segundos que contam a História.

Meus olhos são quem conversam
São quem exploram.

São quem faz de um buraco, uma tampa
Um chapéu de palha,
Um santuário.

São quem enxergam portas onde janelas se fecham.
São quem cruzam a rosa dos ventos
Sem direção alguma. Rumo ao infinito.

São quem, ao cruzar o horizonte invisível,
Continuarão rodopiando no chão.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Maria não olha.

Fora um dia difícil, daqueles em que a gramática foge das descrições semânticas. Aliás, isso é uma coisa cansativa, feita para escritores obtusos. Que adianta saber como estavam as árvores, o lago extremamente parado ou em fúria, se as ruas estavam movimentadas ou cruas em sua própria nudez? Leitor bom é leitor que só busca as personagens. Os desígnios descritivos da gramática existem somente para povoar páginas extensas e cansativas. Entendam, agora, que acabo de cortar os pulsos ao descrever extensamente uma opinião que me anula quanto ao que escrevo. E o próprio fato de me anular, me torna, também, obtusa.
Ao chegar no ponto de ônibus, olhou as pessoas nos olhos, e notou pedaços de chuva e fúria em cada olhar. O sol acima faiscava, mesmo sendo, aquela hora, o fim do dia. A princípio, as coisas seguiam seu fluxo normal. Acordou. Vestiu as roupas. Saiu de casa. Pegou o transporte. Ouviu grito do Chefe. Fez-se animal. Saiu para o almoço. Curtíssimo almoço. Voltou para seu enjaulamento. E, abro agora, um parêntese.
Faça, leitor, por favor, um parêntese em sua cabeça enquanto as próximas palavras encherem teus olhos. Desenhe um espaço vazio e complete com o que vos direi por liberdade pura. Minha liberdade literária ingere ecstasy.
Eu não consigo entender, e te digo isso com sinceridade, o que as jaulas tem de tão, tão, para andarem cheias. Sabe, as jaulas, os escritórios cheios. As pessoas bebericam cafezinho naqueles copinhos plásticos enquanto os pés batucam o elevado chão. No entanto, elas não sabem que elas próprias são o plástico que formata o copo. Elas são plásticos programáveis. Isso é patológico!
Eis que ela estava ali -, e agora, leitor, feche os parênteses - inerte em pensamentos doidos. O que fazer para jantar? As crianças, as crianças estão bem? O marido, Ah, fulano! Onde estaria? Não lhe mandara mais mensagens, nem telefonemas, nem respondia às múltiplas cartas. Até que desistiu de reencontrá-lo. Chega uma hora, ah, chega uma hora em que é preciso calar as verdades em si e seguir no mundo sem a outra pessoa. A adjacência que é intransitiva é uma coisa dolorosa.
Os carros passavam arrancando pedaços de ar, deixando, para trás, um vácuo tão veloz quanto sua própria vida. Mulher cansada, anexada ao viver de sobrevivência própria. Ela, ela e os filhos. Dois. E o mundo acabara. Até que todos os teus pensamentos foram cortados quando viu seu ônibus, em escala de cinza, aproximar-se. Um bolo humano formou-se à porta enquanto ela, com olhos cansados, via as formigas empurrarem-se furiosas. "Deus do céu..." Pensou. E se Deus, em Sua soberania, ouvisse o teu chamado mudo, assustar-se-ia com tanta estupidez.
Até que finalmente, com passadas curtas por entre as pernas doidas, achou lugar para sentar. Seria uma viajem longa. Eu tenho, também, umas coisas absurdas para dizer sobre viagens longas. Mas, não, não vou dizer. Agora não. Não quero, leitor, que se sinta tentado a parar o texto antes mesmo do texto começar. Crê? Escrevi tanto e a estória nem começou. Pois eu mesma, que sou narradora-opcional, já estou com os olhos ardendo só de imaginar continuar a escrever. Mas começo coisas e, como tal, preciso fazer com que as coisas acabem. Paciência, comigo, leitor, você tem?
E quando perdeu-se em sono lento, ouviu o espirrar de calma rara. Os batimentos cardíacos, regulares, transpassavam o ritmo lento-azul em que a personagem principal fora abduzida. Então, um choro de criança.   Daqueles em que se ouve em casas de mães recentes. A criança devia ter seus três anos e já era capaz de ensurdecer metade do ônibus. Lá se fora o descanso prévio de nossa personagem, perdão.
Até que mãe e criança andaram até o meio do ônibus. Pararam jocosos e quase-mudos sem achar lugar. De pé, equilibrada sobre dois pés de onça, a mãe segurou firma a mão pequena do seu. Era um menino lindo. A personagem olhou os dois e pensou se teria aquela força toda para andar com seus filhos. Não, certamente não. Não que não gostasse deles, mas é que quando os ouvia chorar, deixava-os sozinhos até que estivessem calmos. Método inventado por ela mesma, que não tinha paciência alguma. Sua vida era o escritório. E ter duas vidas não é talento de muita gente.
Relaxou na cadeira e estava quase que totalmente de corpo amolecido, se não fosse a senhora do lado fazendo barulho de ruminação, dormiria feito antes. A criança chorou de novo e ela olhou os olhinhos vazando água. "Coisa nenhuma, uns bons tapas acalmariam a boca do pirralho...." Pensou, pensou e só pensou. Continuaria pensando se não fosse interrompida pela voz materna que dizia:
-Pode carregar meu filho para mim? Ele fica enjoado quando entra em ônibus e não quero que ele fique...
-QUÊ?!
-Por favor -, repetiu quase num sussurro
Suspirou longamente até ver-se dizendo "Sim"
A criança era macia. Confirmação maior para se dizer que criança nenhuma é oca. Ocos são os olhos de quem nega a maldade própria. E, sentado, o menininho olhou a personagem nossa com doçura. Era uma moça diferente. Tinha rugas. A pele era clara, mas estava com manchas vermelhas de sol. A boca tremia e aquilo era engraçado. Nenhum sorriso, somente seriedade. A moça, embaçada pela timidez, desviou o olhar e a criança não pôde analisar teus olhos. Uma pena. Pois, leitor, não há nada que estampe tudo tão bem quanto teus olhos. Se se enrugam pelos cantos, estás a sorrir. E isso é bom. Se vazam, então tu choras. Que também é bom. Pois se tu choras, leitor, é sinal de que tens coração e alma. Então tens tudo.
O ônibus seguia esquina por esquina, parava para colocar mais gente para dentro, então tornava a seguir. As janelas, fechadas, não impediam a criança de olhar os prédios entortarem-se em vento. E sorria. Escandalava. A personagem olhava, de quando em vez, para isso e escondia a rizada, que saía abafada pelo nariz. "Que tolice..." A mãe do menino ia agarrada ao lado, sorrindo forçosamente. Não de orgulho, mas era uma força também cansada. Culpa do sistema. Mas não sou eu quem apedrejaria o sistema. Ele existe e só. Eu apedrejo quem, cegamente, faz parte dele e edifica-se por ele. Seus mundos cinzas me enojam.
O colo de Maria ficou vazio quando a mãe da criança a puxou para descer. Maria sentiu-se inerte e compadecida. "Mas já...?" A pele macia do menininho haveria de ir-se embora e Maria não o tocaria nunca mais. Silêncio.
- Vamos, pequeno! - Disse-lhe a mãe, paciente.
Pequeno, em seus próprios pés, uniu força e edificou-se até alcançar o rosto de Maria. Então, beijou-lhe a bochecha flácida.
- Tchau, moça bonita! - Disse-lhe com acenos de mão frenéticos.
Sua mãe esticou-lhe o braço e saiu do ônibus com ele no colo.
Maria não olhou para trás.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Sobre o futuro.

Aqui,
O futuro nos engole.
Engole as praças,
As ruas,
As Igrejas sem Deus
E as casas de deuses.

O futuro engole
Os homens de fé
E os homens sem fé
- Sem olhar de quem é o umbigo.

Aqui,
O futuro engole a morte,
A sorte,
A vida,
As tripas,
Os bois,
Nós dois.

O futuro engole os homens,
Os buracos,
O caos.

O futuro engole
Os desgostos esculpidos em mármore
- Ou em pedra sabão,
- Ou em areia viva.

O futuro engole
Santos de madeira,
Santos de Barro,
Santos de Metal,
E os Santos de Fé.

O futuro engole os que por ele vive
E os que vivem sem vida,
E os que vivem de sobreviver
E os que sobrevivem de viver.

No mais,
Depois da coisa,
Depois do fato,
Nós é quem engoliremos o futuro.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Água de Sal.

Como se coisa
Em coisa,
Converte-se

Como em som,
do som,
vos murmura

Como em água
De sal
- Descobre-se ternura.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Rachaduras

Constroem-se casas,
Apartamentos,
Blocos,
Museus,
Naves...
... Quem constrói o lar?

Constroem-se Igrejas,
Com dízimos,
Sem dízimos,
Grandes casas para Deus
E para o bolso.
... Quem edifica o Pai?

Constroem-se muralhas,
Muros intransponíveis
- Separando os nortes.
... Quem constrói os homens?

Constroem-se plural,
De dois, de três.
Plural puro, impuro.
Plural.
... Quem constrói o amor?

Edificam, constroem
- Mas desconstroem.
Grandes engenheiros, taciturnos,
No entanto,
Tem se dedicado  às molduras.

Entre as construções,
As muitas construções,
As tuas construções,
Valiosíssimas construções...
Eu vejo rachaduras.

CLARISSA DAMASCENO MELO

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Amor.

A crônica do mar
Que parte em ar de verso,
Num ângulo amiúde
Paralama desconvexo.


Qual o valor da rima,
Entre partes de um todo
Que se multiplica louco
Em azes de menina?

Em ar de par,
Em verso.

Em mar de lar,
Convexo.

Viver, negar
Que é louco

Em cor de dor
Que é pouco.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Ondas cíclicas.

Olhei
Com olhos murchos
De quem já olhou antes.

Encontrei,
Com a agonia ilustre
De quem já
Havia encontrado antes.

Pensei,
Com a ternura
De quem já
Havia pensado antes.

Esqueci,
Como quem já
Esqueceu milhões
De vezes, antes.

CLARISSA DAMASCENO MELO

domingo, 11 de novembro de 2012

Feiura.

Olhou o espelho,
O rosto,
A vida.

Não eram seus olhos,
Seu nariz,
Sua boca,
Seus ombros ou braços.

Sua feiura
Morava nas mãos.

CLARISSA DAMASCENO MELO


sábado, 10 de novembro de 2012

As mãos do mundo.

Onde estão os físicos, 
Os químicos, 
Os matemáticos?

Onde estão os engenheiros,
Os médicos, 
Os biólogos?

Onde estão os historiadores, 
Os geógrafos, 
Os ditos imortais?

Pois enquanto 
Se debatem achando
Respostas pro sim, 
Pro não

Os poetas
Enlouquecem!

Enquanto aplicam-se
Fórmulas e teorias
O mundo se divide em caos.

De quem são as mãos
Que sustém o mundo
Quando suas bombas
Calam a nossa voz?

Quando lágrimas cinzas
Escorrem em linha reta
Pelo rosto das crianças

As mãos que sustentam o mundo
São mãos de poetas.

São de quem vos descreve,
De quem, sem som, 
Vos murmura.

E tuas fórmulas 
Constroem o mundo, 
Descobrem o mundo, 
Destroem o mundo.

Enquanto os poetas, 
Nulos, exaustos, 
Seguram a lágrima que escorre
Em silêncio 
Do rosto da humanidade.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Das coisas.

Sou das coisas.
Das raízes.
Dos medos,
Dos ídolos.

Sou anacrônica,
Vivendo entre espaços curtos
Entre distancias amiúdes,
Entre versos que querem dizer
Alguma coisa.

Sou uma vida
Que vive entre as linhas
Do que eu digo,
Do que eu escrevo.

Sou verbos
Que não possuem
Dilatação.

Viver.
Vivo nesse meio termo.

Entre o quente e o frio,
No morno.
Entre a liderança e a subversão,
Na inércia.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Presságio.

Entre as armas
Do século passado
Existiam rosas
Anunciando o mundo.

No meio do mundo
Que vive neste século,
Existem cravos
Anunciando as armas.


CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Mais uma de gramática.

Inverdades contáveis são
Verdades incontáveis.

E entre os prefixos apaixonados,
Os núcleos,
Os núcleos vão sendo engolidos
Pelas leis gramaticais.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Cores.

Cores que morrem,
São cores que morrem
E fim.

Saber das coisas,
E depois esquecer,
São coisas sabíveis
E esquecíveis, e fim.

Querer entender o que não se entende,
Não, não é entender.
Ao contrário:
É complicar o complicado.

Rezar com as mãos de nó.
De vazio.
É reza pros bois.

Dentro das mãos,
entre as rugas,
Vive-se uma vida inteira.

E minhas mãos vivem atadas
Diante do Cristo.
Ele tem minhas mãos.
E vive entre as linhas que a cortam.

Diante de Cristo,
Eu fecho os olhos,
Enquanto Teus dedos
Tocam a minha testa.

E as cores vivas
em preto-branco colossal,
Param de ser o que são.
E vão colorindo aos poucos...

Enquanto que meu entender
Ainda fica miúdo
Por dentro do que não se sabe.

CLARISSA DAMASCENO MELO


Meu filho.

Venha cá, meu filho, deitar na cama de sua mãe. Não, não chore. Mamãe está bem, está aqui. Isso, isso, deita sua cabeça no meu ombro e me abraça. Deixa mamãe sentir seus bracinhos. Adorei o seu desenho, os médicos me mostraram ontem e então chorei. Não, não chore mais. Estou aqui, ainda... O que queria dizer com o céu chovendo? Ele chove pra você, não chove? Eu sei... É Deus, é Deus chorando conosco. E a Lua? Que quer dizer com a Lua no meio do dia? É a noite, a noite vindo depressa, não é, meu filho? Mas ela, ela é boa. Você dorme e então esquece que está doendo. Não, não toque aí, ainda doi. Pegue aqui, em minha carequinha. Estou bonita, não estou? Sim, estou. Isso é o efeito remédio, meu amor, o remédio fez isso com a cabeça de mamãe. Enlouquece. Maltrata. Mas cura, é, cura. E se cura é bom.
Fique, oh, fique mais um tempo comigo. Deixa eu sentir você aqui. Deixa eu tocar em seu rostinho e dizer ainda que te amo. Deixe-me ficar com você, meu filho, minha alma. Beije, beije o rosto de mamãe. Eu gosto disso! Faz-me lembrar de seu pai. E, cadê seu pai? Ele não vem mais aqui. Acho que têm medo de... Não importa do que o papai sente medo, meu amor. Você não sente, sente? Não, não sente. Eu te amo!
Vai, vai sim, vai dar tudo certo. Diga a sua vozinha que eu ainda estou bem. Diga que eu ainda quero ver todos, se possível for. Diga a seu papai que estou bem. Vou ficar bem, né? Ainda sinto dor, mas o pessoal do hospital me cuida como ele não cuida. Era para cuidar, mas não, não cuida. Venha, aqui, me dê seu último beijinho. É, a pele da mamãe está fedorenta. Ainda não vieram as enfermeiras para me ajudar no banho. Mas beije, ainda assim. Quero sentir na pele áspera o adocicado de sua boca. Ah, você não muda nada! É sempre esse menino doce. Quem será que você puxou? Seu pai sempre foi tão bruto e eu, é, eu sempre fui durona. Você é doce. Adoça-me, meu filho! Mamãe está prestes à partir.

CLARISSA DAMASCENO MELO