A
noite, quanto mais escura, quanto mais profunda, quanto mais noite seja; me é
capaz de absorver, lento-absurdamente, em seu viés criativo-produtivo. Não, não
digo, pois, que escrevo meu escrever em noites e somente em noites; mas o sabor
turvo da escuridão faz-me parecer menos eu e mais meu ego violento que em mim
habita e não se mostra. Sem pieguice, a noite traz conforto extra às palavras
tais quais estas, que de tão desconfortáveis e confusas, mais parecem
justificativa que qualquer outra coisa.
É
noite, das que as estrelas, de tão cansadas por estarem onde estão, fazem-se
tímidas por detrás das nuvens. Nem mesmo os grilos, nem as rãs, nem os
bichos-noite, são capazes de, lá fora, me fazerem acreditar que ali eles estão.
Nem eu, nessa noite, estou querendo fazer de minha existência, fato concreto.
Eis o motivo tal que faz as palavras que vos descrevo serem singelas de todo
seu modo. Não há agonias em minhas palavras, nem encruzilhadas sem respostas.
Há somente palavras.
Acusaram-me
de labirintar minhas informações. Defendo-me: Não as labirinto; as edifico em
diagonal. Há defeito meu, confesso, no ato próprio do contar história; as horas
antes que se passam antes do começar a acontecer. Peço desculpas pelos grãos de
desaprovação que planto logo no início de cada texto e justifico-me: não sei,
diferente, fazer. E se te evoco, leitor, é, pois, que eu te quero atento.
Dialogue comigo quando fores me conhecer. Ando livre de tempo e necessitada de
prosear além das cruas vias conhecidas.
A
noite, lá fora, é noite doida-escura dos sem o que fazer. Noite que parece
calda quente, jogada em lentas curvas num lençol, ora azul, ora ela própria. Há
algo nela que me põe, inquieta, a comparar-me eu e ela. O silêncio que
incomoda. O abismo que incomoda. A incógnita que incomoda. A solidão tão sólida
quanto gelo bruto que se bota a derreter, vez por outra, por praticidade ou
ação exterior. Nenhum superlativo para nós. Somos, como dizem e digo, eu,
agora, coisa de um mesmo fundo poço.
Lá
fora, leitor, o silêncio é tão concreto e tão concreto é a ponto de deixar,
aqui por dentro, para nós, iscas tais que uso na pesca de inspirações perdidas.
No leve estranhar de mim, lembranças. O vento que ecoa e vibra faz com que eu me
lembre das vibrações internas e incontroláveis, sem com que, no entanto, me
afete exteriormente. Faz com que eu me lembre, dentre todas as outras coisas
que também me lembro, a intransitividade das vibrações tais quais esta que
sinto no simples fato do lembrar.
E,
não somente o vento, mas o borbulhar de folhas que se encrespam em si mesmas, a
festa do barulho-líquido que escuto, aqui de dentro, a quebrar o silêncio
doloroso para, em troca, presentear a natureza com barulho miúdo que, de tão
desconfortável, torna-se essencial. Até o cair de folhas é incômodo bruto e,
logo mais, torna-se música. Um pequeno tilintar anti-romântico de festas sobre
coisas que caem. Folhas caem. Chuva cai. Estrela cai. E, se tu duvidas, não
duvide; vez por outra, pessoas caem também.
Meu
fervilhar de consciência, pseudo-adormecido durante o dia, à noite, é capaz de
fazer-me coisas absurdamente tristes, absurdamente alegres. Essa bipolaridade,
no entanto, bifurca consequências que, em suma, dão-se ao mesmo tempo e sem
diagonais, solidamente a fazerem-me inteira. Não serão, julgueis agora, o
resultado primordial? Essa quimera que nos completa não é, senão, lado dia e
lado noite? O que estou querendo dizer, no entanto, é que meu lado noite é
composto ainda por outras tantas quimeras bipolares que, no fim, nem mesmo sei
por quantas partes me construíram.
Por
algum motivo, a noite cai. E que, nesse momento, os físico-químico-biólogos
fiquem permanentemente em silêncio. Não quero ciência capaz de me explicar a
frequência noturna da escuridão. Só quero entender a noite de forma
poético-lírica. Se eu disser que a escuridão é fruto de pedido meu para treinar
minhas vistas quando dia for, por favor, cientistas, silenciem. A noite cai
porque, dentro de todos os outros fatores, existe um pedido meu. Caia noite,
dê-me vida.
Quando
é dia, e me ponho a caminhar pelas ruas de qualquer cidade, vejo coisas que, se
fosse noite, eu não veria. Um menino de boca aberta me pede moeda e não as
tenho... Perceba que, se fosse noite, eu não o veria. Quando é dia, eu vejo
prédios diante de mim e, no entanto, não vejo o que eles escondem atrás de todo
o cimento; se fosse noite, a culpa seria dela. Caminho dentro dos carros
engarrafados e me atraso diante de um fator que foi criado para não me fazer
atrasada. Se fosse noite, e agora eu me sinto exausta e crua, eu caminharia
fora dos carros e ainda me sentiria dentro deles; no entanto, seria noite e
acabo aqui minhas reclamações.
A
noite, leitor, me serve para me fazer criar desculpas grandes. Desculpai-me
pelo meu silêncio sólido. Desculpai-me pelas palavras enérgico-amargas.
Desculpai-me pelo desprazer de me vestir de mim logo cedo de manhã, mas, no
entanto, fazer-me outra aparecer, outras, que também me sou. Desculpai os
grandes períodos, os grandes parágrafos. Minha falta de técnica é, talvez,
maior que minha necessidade de escrever.
E
se minhas desculpas pareceram-lhe poucas ou frias ou escassas de tudo, perdoai,
também. Ultimamente, tenho sonhado o dobro. Mas, à noite, o sonho me vem
encrespado com o conforto que nem sequer é meu. Imagineis: eu, pobre de juízo,
deitada por sobre caldo quente, a imaginar os dias depois destes que me
invadem! Que loucura! Se me embargo a sonhar, agora, entenda, é o fator-noite
agindo em mim.
Certa
vez, vou lhes contar com precisão, em uma aula qualquer, pediram-me para
escrever um parágrafo. A estranheza desse fato é por ele pertencer a um tempo
outrora sonhado que, agora, por ser sólido-carne, não tem tanta importância.
Escrevi e achei o parágrafo o mais bonito do mundo. Muitas letras; meus verbos,
conjugados em amor maior, choviam e faiscavam. Mas eis que disseram dele coisas
que me encresparam o rosto. Meu júbilo era fracassado, então, eu também o era.
Em
contra ponto, noites e mais noites antes desse fato, quando o fato desse fato
ainda era um fato a ser sonhado em outros fatos, eu escrevi outro parágrafo sem
que me pedissem. Era horroroso: muita técnica, pouca liberdade. Meus verbos não
eram meus, nem tampouco, as vogais maiúsculo-minúsculas. Sossegue:
abrilhantaram-no. Concluí, agora, porque me embaraço a dizer de minha técnica?
Fato é que, durante o dia, só sirvo se eu estiver condicionada a outros tempos.
Só faço questão de me ser, no entanto, quando e por quanto eu for julgada para
baixo. Só eu sei a resposta.
A
noite é a resposta: ela é quem me faz o labutar mais doce-quente. Sem ela,
talvez, eu me dedicasse a ver e sentir outras coisas subjacentes e
deselegantes. Talvez eu me enfiasse em livros técnicos demais, ou me fizesse
nula diante de pensamentos meus. O dia é cheio demais e eu não caibo por dentro
dele. Ele me excomungou no dia mesmo em que resolvi nascer à noite. Veja você:
e ainda dizem que a noite é traiçoeira!
Durante
o dia, eu saio às ruas vestida de trajes limpos e escassos, passo pelas
esquinas em que, à noite, trabalham elas que não usam roupas. Quando é dia. Eu
vejo a bala atravessar a garganta do bandido-morto. Por quanto mais a luz
brilha seu brilhar diante da terra, eu vejo crianças sendo enxotadas de suas
casas para irem trabalhar à força, eu vejo mulheres apanhando, eu vejo a
escassez de água, eu vejo o descaso, eu vejo meus vejos e vejo a omissão.
Sinto-me no dever de, quando ser noite, cuspir pra fora todo o escopo absorvido
à luz do dia. Queridos, a noite é minha justiça. Sem ela, não há prazer.
CLARISSA
DAMASCENO MELO
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