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sábado, 27 de setembro de 2014

Utopia.

Bocas
bocejaram
beijaram
balbuciaram, bocas

falaram da guerra civil
espanhola - e então beberam vinho
da crise de 29
dos irmãos chilenos golpe de 64 bombardeio 
militantes presos capitalismo sonho união soviética
américa e coreia do norte

redigiram utopias
nas linhas invisíveis sob olhos atentos

falaram de tudo e de si mesmos
retinas coladas 
corpos sujos, cansados

no céu, o céu apenas
e eles se abraçaram sem nem perceber as estrelas
já as tinham visto 
milhões de outras vezes

nem as estrelas
poderiam brilhar mais que aquele momento:

no chão, 
abraço de primavera
suor e vinho tinto.

a utopia é doce
de se comer junto. 

Cdmelo

Eu em ti.

Chegastes
No momento mesmo 
Em que fechava meu coração 
Às janelas do mundo.

Com tua calmaria e silencio
Fostes abrindo brechas 
Nos muros intransponíveis
Que eu mesma criei.

Fostes ficando, 
Mudo, habitado em meu mundo. 

Com as pontas dos dedos
Encontrastes a delicadeza mais interna e íntima
De meu machucado ser.

E sentir a ponta dos teus dedos
Leves, serenas, afastando a distância entre nós
É poder doar-te a chave de mim.

Não precisas estar mudo, fala!
Já não suporto meu silêncio - ele grita. 
Fala, que tua boca 
Tranquiliza minhas retinas. 

Se queres entrar, 
Entra sem bater.
Puxa a cadeira, senta. 

Fica. 

Cdmelo.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Prêmios.

Nunca ganhei nada com poesia:
Além das medalhas, dos certificados e 
dos abraços e dos parabéns; 
uma jarra de solidão serve meu copo.

Clarissa D. Melo

Minhas retinas.

Minha retinas, pobre delas,
Esperam rever os velhos
Que já se foram. 

Clarissa D Melo

Adeus, Panta Rhei

O que destrói o surrealismo da vida
É o imenso peso do
Inexorável.

Adeus, Panta Rhei,
Pois Heráclito esqueceu
Que existem dores
Permanentes.

Clarissa D. Melo

Seguir adiante.

Ainda que os jornais 
Mintam sobre nós

Ainda que a polícia
Venha nos prender

Ainda que tiranos
Desejem nos matar,
Seguiremos adiante.

Podem fazer com que
tentemos desistir,
Mas nós não desistiremos:

Ainda que as algemas
Nos apertem o pulso,
o braço esquerdo permanecerá erguido.

Clarissa D. Melo

Não é tempo de silêncios.

Homens e mulheres de meu século, 
Jamais silenciem.

Mordam as mordaças
Que lhes forçarem usar. 

Escuto os tempos do absurdo,
Debruço-me sobre lágrimas.

A Era da Barbárie não morreu:
Está aqui, ensanguentada.

O lucro capitaliza as emoções,
E até a minha lágrima que escorre
Tem preço.

O beijo já não se beija:
Compra-se.

Não mais existe o entre-bocas,
Somente o privilégio
De beijar ouros e joias e terra...

Homens e mulheres de meu século,
Permito que, sobre mim,
Chorem.

Legitimo vossas lágrimas
Ante minha ressecada pele.

Sou o calor de mãe
Que afaga o filho sem terra

Sou a mão da mãe
Que toca o corpo gelado do filho morto,
Baleado,
Que fazia manobras no sinal.

Sou a poesia livre,
Encharcada de sangue
Dos filhos de mim arrancados,
Dos filhos que não pude criar.

Filhos,
Não vos assombreis
Com o abalar de meu coração.

Não vos desespereis
Com esse mundo de injúrias.

Teus pés descalços ardem,
Mas são capazes de andar.

Marchem, filhos,
Marchem juntos.

Lado a lado,
Ombro a ombro.

No principiar da Nova Era,
Eu sou a mãe de braços abertos.

No meio do tiro atravessado
E da justiça tardia,
Eu sou a revolta.

Eu sou a Mãe-Terra,
Eu sou o amanhã. 


- Clarissa Damasceno Melo

Dos meus devaneios.

Sentada na beira do nada, olhando por fora da janela azul, eu me senti saudosa de mim mesma e procurei buscar, nos cantos, os meus pedaços que resolvi perder. Meu Deus. Como pude eu, que sempre fui outra, esquecer de mim mesma e encostar-me num lugar qualquer? Perdi minhas linhas e minhas estribeiras, meu Céu e meu verão, meu inverno, meu outono, minha moda: perdi tudo. Por quantas vezes quis suspirar e não sabia como? Quis andar e não sabia quando, quis fazer de mim quem sempre fui, sem saber por onde. E outrora estive perto de sentir como se nunca houvesse feito sentir antes. E mais uma vez, e outra vez e mais uma.

Sou poeta sem poesia. Sem o frio na espinha, no meio do ventre. Abandonei as letras e meus dedos duros, inquietos, venenosos... Mas eis que me sentei na beira do nada, por cima de tudo, pra procurar saber por onde vaga o eu que sempre fui. Meu Deus. Que me perdoem os afeitos à objetividade, e nisso eu mesma busco o meu perdão. Que me perdoem os afeitos à falsa modéstia - aquela que cerra os dentes pra não fazer sorrir: mas sou pó de mim mesma e sentada aqui no devaneio busco compreender o inexorável prazer de me ser. Se nada fui, agora é que não sou.

Com o perdão da palavra, espero não ser perdoada por vossos olhos, vossas tripas, vísceras e vinho espumante. Espero ser incompreendida, inconstante que sou. E se minhas letras se confundem e se atropelam por cima de minhas ideias; busco o vento que vem da janela aberta espalhar meu pó: eu sumo.

Quem diria eu... me despedindo...

Clarissa D. Melo.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Resistência.

Quando criança, me sentava na porta de casa para olhar a árvore de florzinhas amarelas. As flores caíam e pintavam o chão. Era a minha festa.
Cresci: raízes e galhos da árvore destruíam parte de minha casa. Por debaixo do cimento, as raízes crescem. Não a culpo. A árvore é o exemplo mais fácil sobre resistência, mas foi cortada.
Também em meu quintal uma planta quebrou, com suas raízes, dois baldes. Mataram-na.
Meu pai comprou rosas para presentear a minha mãe. Uma delas lhe espetou o dedo e ele soltou o buque.
Esfacelaram-se todas.

Quando eu cresci, estava avisada de que, se eu lutasse para sobreviver, eu seria morta.
Clarissa D. Melo

sábado, 1 de março de 2014

Tossiu. Eu tossi. Uma massa branca endurecida saiu de minha garganta. Senti seu voo sair de mim e cair ao chão, assim como as grandes promessas. Toda manhã é assim: um pedaço de dentro de mim resolve conhecer o mundo de fora e - espanto! - decide não voltar pro lado de dentro.

Não: não é uma metáfora ou qualquer outra figura de linguagem; todo dia é assim. 
A massa branca, presumo, é algo acumulado na garganta durante o sono que resolve incomodar assim que o sol começa a brilhar seus primeiros brilhos. Levanto os braços e tusso, abro bem a garganta e faço força para me livrar do pedaço-de-alguma-coisa.

Juntei minhas dores com o mesmo carinho de sempre, concentrei-me em minhas pernas - centro do mundo -, e empreguei uma força feita de física moderna e me pus de pé. Os físicos que me perdoem o jeito atravessado: física não me serve para nada. Ironia ou não, deixo à cargo do leitor - meu juiz ferrenho e inexistente.

Eu, com minha dor de velha, pós-chegada aos anos de ouro (ou de chumbo), arrastei-me até a cozinha. No caminho, uma bandeira vermelha do partidão. Eu sempre olho para ela, é tão religioso quanto cuspir um corpo estranho. Uma saudade estreita de vê-la tremulando; uma dor apertada no peito - ao lado esquerdo da dor -, uma coceira interna enjoante por ter tremulado uma bandeira por toda a juventude e, graças ao ódio humano, à covardia humana, às coisas humanas, ainda ver quem não tenha quiçá as dores que eu sinto. Há quem não tem nada e isso deveria lhe ferir o caráter.

Sobre o mundo, pequeno mundo, vasto mundo, mundo mundano, mundo sem eira, beira, ética, caráter, filosofia - ao mundo, falta o mundo. Sobre o mundo, esse mundo que vos digo pensando não em mim, mas em minha manhã religiosa, em minha dor de velha, em minha dor de mãe, de doente mental, de doente da carne, do espírito, da fé; sobre o mundo vos falo silêncios agudos, miúdos, que vociferam e se anulam em meu peito. Guarde o mundo no bolso, finja fechar um dos olhos e guie-se em seu caminho com o olho esquerdo bem aberto. O mundo precisa de olhos esquerdos.

Cheguei na porta da cozinha e um susto apertou minha cabeça. Senti uma agoniação repuxar a minha nuca. Grãos de milho jogados ali. Quem poderia? A proeza de fazer renascer a lembrança e o grito, a lembrança e o castigo, o medo da chibata moderna, da sandalhada na cara, do cinto no bucho... somente aqueles grãos espalhados no chão conseguiram. Em um segundo - em menos que isso, talvez, quem sabe? - vi minha mãe com seus braços fortes me jogando de joelhos encima do milho moído por ela mesma, seu terço nas mãos escorriam para as minhas, ela dizia:

- Peça perdão ao senhor!

E eu não entendia por que o Senhor quereria que eu lhe pedisse perdão. Minhas danações nada tinham a ver com o senhor, eram minhas, minhas molecagens de menina sonhadora, de menina amarela do interior, que tem medo de tudo, de todos, tímida, calada, mas que conhece as explosões internas sem o prévio planejamento ou externações. Eu ajoelhava, muda, modesta, balbuciava os primeiros versos da ave-maria, valha deus, nunca aprendi a rezar um terço. Mainha gritava:

- Em voz alta! Deus precisa ouvir!

E me batia na cabeça, os mesmos tapas, as mesmas dores, os mesmos olhares trocados sem se ver. Eu não a via, aquela não era a minha mãe e eu nunca vi o Senhor - embora ele esteja aqui, nesse momento, meus olhos, cegos, jamais o viram. Ajoelhada, eu começava em sussurros, encarava o olhar de minha mãe e aumentava o volume até que eu travava. Não sabia continuar aquela reza sem oração, sem conversa sincera: naquela época, Deus era malvado.

Eu fechava os olhos e, em minha cabeça, velhas se arrumavam naquela mesma sala, ao redor de uma mesa redonda coberta com um pano de renda branca, uma jarra de água e uma bíblia que pesava mais do que eu e meus três irmãos juntos. As velhas começavam os cânticos, a gritaria e todas as outras coisas comuns de velhas. Eu, com os olhos fechados, tentava me lembrar o que elas diziam, por quem elas gritavam, mas não me lembrava de nada além do fio descompassado da barba branca de uma velha negra que deveria ter seus dois metros de altura.

E eu apanhava.

- Você vai pro inferno! Dizia minha mãe, os olhos esbugalhados, vermelhos, sedentos. Aquilo me assustou e amedrontou toda a infância. Até mesmo hoje, mais de sessenta anos depois, sou capaz de fechar os olhos e ver os dela. Eu ficava ajoelhada, por cima dos grãos, meu joelho ardia, sangrava, triturava-se, enquanto minha mãe gritava os versos para eu repetir em voz ainda mais alta. E enquanto ela fazia isso, eu me perguntava sobre os verdadeiros propósitos de Deus. Comigo a gritar repetidamente os gritos de mainha, com as mãos em concha, chorando e sangrando, desconfiava que o propósito maior de Deus era o de ficar surdo.

Ali, aqueles grãos bem arrumadinhos, jogados no canto da parede, me fizeram desadormecer tudo o que estava quieto, no seu canto. Enfiaram um dedo dentro de uma ferida eterna que não se cicatriza. Aquela dor era como se pus escorresse entre minhas veias e eu fosse feita de matérias descartável - Eu sou, nós somos, eles serão... mas a beleza da vida é passar sem perceber esse detalhe.

A rasa felicidade em ter aprendido o pai nosso durou algumas semanas até ter voltado à esquecê-lo. Eu não estudava, mal sabia juntar as letras, então eu prestava atenção no que mainha estava gritando e ficava repetindo no quarto. Deus enjoou de minha voz. Eu dizia pra ele: olhe só, é ensaio, pode ir resolver seus outros problemas e me deixe aqui ensaiando. Deus acabou me deixando no ensaio e jamais voltou quando precisava apresentar o meu teatro. Minha mãe chegava, eu dizia: "Deus!" - Mas não ouvia resposta.

Anos depois, uma batidinha em minhas costas explicaria que "tudo é assim mesmo, tudo tem de ser". Mas minhas amigas não sentiram o doer do sangue pisado a moer ossos e alma. Minhas colegas não sabem o pavor em abafar um riso tímido ao imaginar o céu com todas aquelas velhas chatas e barulhentas e como a casa de Deus era ensurdecedora e chata, só de pensar em todas aquelas velhas indo para lá. Falando em Deus, ele me deve algumas moedas, mas essa dívida material é entre eu e ele, ele e eu.


Ainda moça, ia pro rio que ficava distante seus dois, três quilômetros.  Em minha casa não tínhamos água e eu dava duas idas e duas voltas para encher baldes d'água. Um, eu trazia na cabeça, equilibrado; outro, equilibrava-se na barriga dura de verme e doença. Na volta, um cidadão sempre me parava para pegar de mim uma ou duas moedas. Eu separava pra ele da carteira de minha mãe. Quando ela me viu, pela fresta da porta, a mexer em suas gavetas atrás de sua carteira, levei uma surra e pedi perdão ao Senhor. Quando eu passei pelo homem sem as moedas, voltei a apanhar - mas dele, que com sua dor de fome, não raciocinava sobre o mundo. 

E quem é que poderia raciocinar sobre o mundo? Estamos morrendo de fome e de frio em todos os lugares e Deus.