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segunda-feira, 25 de março de 2013

Sobre você ou sobre o que você acredita acreditar.


Que a verdade, senhor, seja dita: não pareço eu mesma no instante em que nasço de manhã; nem me reconheceria na imagem de um espelho caso este me ficasse à frente logo quando anoitece. Não que eu me seja muitas ou me seja, vais presumir, protótipo de diversidade. Sou estranha a mim e, mesmo você, que me lê, não me reconheceria. Dirá: ué, tu não escreves aquilo que é teu? Como aquilo que é teu não pode ser você?
De certo, confirmo, digo e morro a dizer que cada linha minha é nascida de mim mesma. São meus contos universais que somente eu conheço. Não existe fábula inventada que não seja a verdade de alguém, creia. Mas a questão-quesito é mais imóvel que tu pensas. Entre o dia e a noite – e essa ideia roubo, eu, agora, do Shakespeare -, existe mais do que sonha sua vã filosofia.  Então, agora, és capaz de notar? Não sou muitas, nem várias. Eu só me sou. E eu sou um espelho quebrado que se parte em vários pedaços. Sou uma que se divide, e então, sou várias. Engula, você, mais esse paradoxo.
Se estiveres a franzir a testa e a julgar-me cabulosamente, então, leitor, cheguei ao meu ponto máximo de estupidez; então, cheguei ao fim. Leia-se: se me esgoto a desenganar-te e fazer-te tu a me debochar e denegrir, ah, cheguei, sim, ao meu final querido. Não, não despeço-me, pois. Que sirvam de lição os dogmas aprendidos e devorados que não nos servem para nada. Tu ficaste trancafiado a quatro paredes, fizeram-te engolir a gramática, os cálculos, as leis da física-inútil-útil, mas jamais – por favor, creia – fizeram com que você engolisse a si mesmo.
Em sua escola nunca te disseram que tu eras livre para não estar ali.  Que tu podias sair a passear pelo pátio, beber água no bebedouro de fora ou, vamos mais longe, pegar suas coisas e ir-se embora para casa ou para a praça onde passariam aquelas pessoas populares. Não. Fizeram-te acreditar que tu deverias continuar ali, sentado. Não foi, leitor? E, se em algum momento, tu puxares da memória que um dia alguém lhe disse isso, favor reconsiderar: se disseram, foram de uso à psicologia-inversa. Disseram só para que tu não acreditasses e então estou certa.
Disseram para você que se você dormisse sem rezar, você teria pesadelos. E mesmo que tu acordasses no meio da noite dizendo que havias rezado, e se chorasses com medo dos monstros deitados em sua cama; falar-te-iam para continuar rezando. Não que a reza não te sirva – e esta serve, mas é que lhe valeria muito mais se te dissessem que você mesmo poderia levantar-se para acender a luz. É isso: ninguém te ensinou a acender a luz.
Disseram que você deveria oferecer sua merenda para o colega do lado, mesmo que este não tenha te desejado bom dia. Eu, leitor, te alforrio de todas essas leis que te enquadraram. Se quiseres comer tudo sem oferecer a ninguém, o direito é seu. Mas faça sabendo que, assim, não és digno de aceitar o que quer que seja de ninguém. Eis que tiro as grades e ponho as cordas.
Fizeram-te supor que homem não chora e se tu, que me lê, for homem, digo que, por favor, derrame agora todas as lágrimas que não te deixaram derramar. Homem chora. Todo homem é, também, mulher. E se tu és homem, dê-me mãos. As minhas, de moça simples, de jovem-velha, de menina-mulher, de vadia e de anã, estão soltas. Jazem por aí e se limitam ao labutar da criação. Mas, se tu que me lê for moça também, dê-me olhos. Talvez os teus já tenham visto um caminho-sonhado que eu jamais vi. Se és moça, deixai-me ver caminhos novos.
Fizeram-te crer que teus pés, embora teus, haveriam de seguir caminhos traçados por outras mãos. Discordo. Embora os caminhos já tenham traços prontos, eles ainda são teus. E se tu não errares caminho algum, jamais saberás qual é aquele que lhe escreveram. Na dúvida, erre todos os passos. Deixe-os marcados na areia da praia, não os deixe passeando pelo cimento. E mesmo que lhe seja forçado o uso de ternos e de roupas pesadas, vai assim mergulhar no mar. Não há peso que não resista ao sal-salgado e à água.
E, agora, comigo, leitor, julgue: passou a vida inteira acreditando no que lhe fora dito. Se disseram-lhe sim, imbecilmente, tu dizias sim. Se te negavam, fazias birra por uns segundos e, logo mais, trocada por doce, calavam a sua boca. Se te fizeram crer que faria frio se tu não preenchesses teus vazios, tu fizera questão de jogar dentro de ti qualquer coisa que lhe pusesse em zona de conforto. E foi assim.
Justo. Se é para a morte que se caminha, por que tu deverias acreditar que todos mentem? Se não souberes responder, creio que tenhas vivido de forma imbecil. A imbecilidade, embora doce, lhe deixa vulnerável ao que quer que seja. E agora vou falar sobre aquilo que nem eu nem você conhecemos. Talvez, a gente faça juízo disso daqui a alguns segundos, alguns meses, anos, ela é tão certa que é incerta. Se tu sabes que vais morrer, então, porque ainda continuas a colonizar sentimentos?
Porque tu engarrafas aquilo que és. Se tu não és peça do tabuleiro que lhe impõem, saia dele! Vamos, leitor. Saia da sala de aula! Acenda a luz! Engula, sozinho, a sua merenda! Chore! Caminhe! Erre caminhos! Só, por favor, por você, que um dia verá a morte; nunca deixai de fazer aquilo que não passa de ser você mesmo porque disseram que de outra forma seria melhor. Se estás em vida, a vida é sua. Ela é tão tua que tu a terá mais vezes e não me assusta o fato dela já ter sido tua outras vezes. Morrer é besteira.
Último pesar: só deixe que lhe calem a boca se o fizerem com um beijo. 

CLARISSA DAMASCENO MELO


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