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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Um Hobbit


Billy nasceu na escócia. É um dos meus atores favoritos. É que ele tem humor e eu gosto de gente com humor. Contrastes. Ele foi criado por sua vó quando seus pais morreram. É isso que eu acho bonito em Billy: ele soube domar a dor. Transformou todo o oco de seu coração em bom trabalho. Em alegria. Em amor.
Ele foi Pippin - um dos Hobbits da trilogia "O senhor dos Anéis."
Vídeo: Hit Me baby one more time, cover da Britney Spears






Diamantes


Estava ele lá do outro lado da calçada. As mãozinhas iam no bolso, chacoalhando o vazio frio que havia ali. Os olhinhos se espremiam por causa do sol e sua testa gotejava suor. Mais um dia de vida...
É que quando a noite cai e seu pequeno estômago reclama, ele só encontra farinha seca e água. Sua mãe faz um daqueles pirões e enche o prato de cada um de seus seis filhos. E sua vida era assim, tão triste e tão dele que ele não se conformava.
Quando é cedo, bem cedinho da manhã, antes mesmo do sol nascer, ele já está de pé. Não come nada além de mais farinha e água e sai com seus cinco irmãos avenida a fora, atrás dos turistas amarelos que ele vê e fica bobo.
É que, se ele não conseguir uma boa quantidade de moedas para a sua mãe, é capaz de levar mais bofetadas do que já leva. E tanto ele quanto seus irmãos têm medo das bofetadas de sua mãe. Por que ela é daquele tamanhão de mulher: maior pros lados do que pra cima.
E ele encostou no balcão do acarajé. A baiana negra usava um torço no cabelo e colares coloridos espalhados pescoço a fora. A nuca gotejava suor e o barulho do óleo quente só fazia aumentar o calor que fazia ali dentro. Uma fila enorme de gente querendo provar do acarajé e vatapá da baiana, e ele lá... perdido... querendo só algumas moedas para não apanhar como havia apanhado na noite anterior.
Tomou-se por invisível e deu alguns passos para trás. Encostou em um homenzarrão de orelhas vermelhas. Usava tênis e meia até a canela, bermuda apertada e chapéu de palha. Pensou: Turista. E talvez ali ele encontrasse algumas boas moedas.
Encostou nele e deu uma leve cutucada em seu braço. Não disse uma só palavra à ele que, quando foi olhado, limpando o braço com passadas frenéticas de peito de mão, o turista afastou-se praguejando em um inglês indecifrável.
E murcho o menino se afastou. Olhando o chão barroso, pensando nas pauladas que o aguardavam quando chegasse em casa. E seus olhos já brilhavam úmidos, prevendo a dor que aquilo lhe causava. Comeria pirão aguado e dormiria de fome e de dor. E a vida é mesmo muito bonita!
Quando levantou a cabecinha, avistou uma velhinha de coque na cabeça com umas duas crianças brincando em sua frente. Foi correndo até lá, as mãos em concha quase que tremelicando.
Antes que pudesse abrir a boca, a velha tirou do bolso umas cinco moedinhas de mesmo valor e as jogou nas mãos da criança. E a vida é mesmo muito bonita!
E sorrindo, afasto-se dela com a esperança renovada. Pôde até perceber que o céu estava azul demais e que, se chovesse, não faria mal. Retomado de boa vontade, colocou as moedinhas no bolso e seguiu em frente, como mandavam as grandes estórias.
Foi quando, ao passar de uma esquina a outra, um rapaz o chamou. Foi pulando de felicidade até lá. “Será que ganharei mais?” pensou animado. E, puxa! O cheiro de viver é incrível.
- Diga rapaz!
- Digo! – Respondeu o menininho, as mãozinhas em concha esperando o agrado.
-Diz...- Se riu o moço que flexionou os joelhos para poder olhar o garoto melhor. – Tá quente aqui, vamos andando.- Sugeriu o rapaz
-Vamos – E os dois andavam pela calçada, desviando dos coqueiros. O mar fazia um barulho gostoso e o vento com cheiro de areia molhada invadia os pulmões de ambos com maestria. Era um renascimento.
- O que você faz?
- Sou pedinte, senhor.
- Hm, e o que um pedinte faz?
- Pede.
Houve uma pausa. Enganamos-nos com facilidade absurda, quase que demoníaca. E a vontade de explosão chacoalha. Mas há uma coisa linda: nossa inocência.
- Além de pedir, o que você faz?
- Nada.
- Por quê?
- Por que não tenho tempo.
- Por quê?
- Por que estou pedindo, uai.
- E pedir é ruim ?
- É. Eu sou péssimo. Hoje uma moça velha me deu uns trocadinhos e só. Pelo menos da surra de minha mãe eu me livrei... Mas eu não gosto de ver meus irmãos apanhando, me dói todinho vê-los roxos que nem eu.
- Hm. Sei.
- Sabe?
Houve uma pausa
- Sei que deve ser ruim, uai.
E os dois se riram sem perceber.
E o moço parou e olhou-o um bocado de tempo. Era um menino pobre que tinha uns trocados. Mas o moço também era pobre e não tinha trocado nenhum. Os dois pareciam iguais, mas de tamanhos diferentes. As mesmas mãos vazias, os mesmos pés descalços, os mesmos corações moídos de fome. E a vida canta lindo!
O moço agachou e olhou mais um instante o menino.
-Olhe pra mim! – Disse ele imperial.
-Diga, moço. – O olhar triste da criança era um choro escondido. Um pouco de céu azul que empreteceu de sujo, e estava prestes a chover dentro dos olhinhos negros da criança.
- Você pode enfrentar as maiores chuvas de sua vida. Mas saiba: o céu não vai cair... – Abraçou o menino de leve. Houve um toque de tuque-tuque-tuque. Seus corações tocaram-se e cantaram juntos – Ele vai estar lá, intacto, juntando todas as estrelas para você – As mãos grandes escorregaram dentro do bolso do menino que, de tão feliz pelas palavras bonitas, não pôde perceber esta invasão – E você pode até acreditar que a luta é difícil demais, mas... – Tocou uma moeda dourada. E outra. E outra. E mais uma... – Por dentro, você brilha. Reluz ouro e vibra. Por que, por dentro, somos todos diamantes...- Juntou as moedas em sua mão e levantou-se devagar, para que não fosse descoberto –E é por isso que tudo vai dar certo.
Olhou-o mais uma vez, despedindo-se dos olhinhos frágeis que conhecera. E, antes que pudesse pensar em outra coisa, saiu correndo e rindo. E a vida canta alto.
O menino ficou lá, parado, digerindo palavra por palavra. Mas eram tão difíceis para que ele pudesse entender... que desistiu.
O importante é que agora ele tinha cinco moedas e não levaria bofetadas de sua mãe, certo? Escorregou as mãozinhas abaixo e, ao chegar no fundo do bolso, seu coraçãozinho apertou. Estava vazio! Oh, ele havia sido roubado!?
Tentou correr atrás do moço, mas desistiu. Ele já ia longe...
E a tarde já estava acabando e as pessoas não são tão boas quanto a velhinha. E ele sentiria a força do braço de sua mãe como na noite anterior. E comeria pirão aguado. E dormiria chorando, com lábios torcidos, para levantar-se cedo novamente.
CLARISSA DAMASCENO MELO




Gatos

Já ouvi muita gente dizer que os detesta. Eu não, só pra contrariar, eu os amo e os tenho aos montes. Já devo ter escrito algo sobre meus gatos. Meus.
Gosto deles por sua postura de ser. Por seus pelos que me fazem mal. Pelos olhos saltados e inteligentes. Gatos não são nós. Gatos precisam de amor e não imploram por isso.
Talvez eu seja mesmo fascinada por felinos por esse motivo: não suporto implorar amor. Queria ser como eles.
Mas há coisas - pontos - que nós somos extremamente iguais, talvez por convivência, por toque mesmo.
Somos valentes e dóceis ao mesmo tempo. Quando somos mal tratados, nos afastamos com medo. E esbravejamo-nos ao simples toque de quem não estamos habituados. As semelhanças entre eu e gatos são assustadoras.
Sabemos amar na medida certa. E odiar de maneira exacerbada.
Há partes de mim que são alegres. Extremamente alegres. Há outras partes, porém, que imploram por autodestruição. Enigmas de uma canceriana em apuros. Ou de uma criança mimada. Ou de uma criança que foi esquecida. Ainda tem isso: Gatos são abandonados com facilidade. Envelhecem cedo e seu pê-lo estraga por falta de cuidado.
Eu sou assim. Estranhamente assim. Como um gato.

CLARISSA DAMASCENO MELO
2012

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Canela de Aquiles

"E nessa viagem louca, 
estar vivo é presente de grego. 
E quem não vive? 
Rasgado da canela de Aquiles... 
um último suspiro para o véu de prata. 
E essa viagem louca 
de insanidade encheu meus dias. 
E de vida, encheu minhas muitas mortezinhas."
CLARISSA MELO 
2012

Ele dela.


Ela disse:
-O que eu tenho de diferente?
Ele olhou-a de baixo para cima e de cima para baixo por alguns segundos, e antes que pudesse responder algo como “cabelo?”, “brincos?”, ela disse:
-Hein?
Fazendo biquinho, ele olhou-a de novo e de novo e de novo... mas não encontrava nada que pudesse dizer “oh, isso mudou.”
Por que é que tem mulher que precisa ser notada para se sentir bem? Pior: por que mulher faz força para ser notada? Eu não. Quem quiser que me note, me toque, me sinta. Eu é que não vou fazer força. Ou sente ou não e acabou.
-Bem... – Respondeu ele, mas quando olhou os olhinhos da esposa brilhando, ansiosos por uma resposta rápida e precisa, parou para respirar e repensar.
-Me diz... O que eu mudei?
E a tortura mental na cabeça do moço o fazia agonizar e morrer segundo por segundo. Ele já havia tido umas três mortezinhas naquela mesma semana com outras perguntinhas que errou. E ele não podia errar de novo, não é? Não poderia magoar os olhinhos úmidos que brilhavam a sua frente.
E o que é que pode ser melhor que a verdade que nos perpassa muito em sempre, nossos próprios pensamentos e... Oh, tanta coisa!? E antes que pudesse responder “Cabelo?”, “Brincos?”, seu coração disse “esmalte” e da sua boca saiu:
-Desculpa querida, não vejo nada além da mulher maravilhosa com quem me casei.
E petrificada a mulher parou ali por segundos e correu para o abraço do esposo, e em seu ouvido disse baixinho:
-Obrigada querido. Essa era a resposta para as outras perguntas dessa semana, pois não mudei nada. Cada milímetro está em seu lugar. Queria ver se você prestava atenção em mim, e eu te amo por não tentar me enganar.
E abraçados, caíram no beijo morto. E ficaram ali, abraçados pela escuridão da noite.

CLARISSA DAMASCENO MELO
2012

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Revive


Revive, menina, teus segredos e virtudes. Tuas vidas e teus medos. Não se desespere a cada gota de chuva, revive, apenas. Olha pros lados e olhe pra dentro. Vê se acima da chuva há um céu, consegue ver o céu? A chuva vem de lá... Doce e carente, lavar teu juízo. Não agonize abaixo da chuva, beba-a e seja ela própria. Por que se chove há raízes que precisam ser regadas com amor. Chover é amor. E teu choro é chuva que vem do coração, e se vem do coração... Ah, menina, se vem de lá, coisas boas é que precisam ser regadas. Regue-as com amor, e quando toda a chuva cessar, sorria. E colha as coisas boas que se plantou.
CLARISSA DAMASCENO MELO
25/01/2012

Eco e Narciso

Nota Prévia: Mitologia grega. Extraído de "O livro de Ouro da Mitologia - Histórias de Deuses e Heróis" , de Thomas Bulfinch. É meu conto grego favorito....

***
“Eco era uma bela ninfa, amante dos bosques e dos montes, onde se dedicava a distrações campestres. Era favorita de Diana e acompanhava-a em suas caçadas. Tinha um defeito, porém: falava de mais e, em qualquer conversa ou discussão, queria sempre dizer a última palavra.

Certo dia, Juno saiu à procura do marido, de quem desconfiava, com razão que estivese se divertindo entre as ninfas. Eco, com sua conversa, conseguiu entreter a deusa, até as ninfas fugirem. Percebendo isto, Juno a condenou com estas palavras:

- Só conservarás o uso dessa língua com que me iludiste para uma coisa de que gostas tanto: responder. Continuarás a dizer a última palavra, mas não poderás falar em primeiro lugar.

A ninfa viu Narciso, um belo jovem, que perseguia a caça na montanha. Apaixonou-se por ele e seguiu-lhe os passos. Quanto desejava dirigir-lhe a palavra, dizer-lhe frases gentis e conquistar-lhe o afeto! Isso estava fora de seu poder, contudo. Esperou, com impaciência, que ele falasse primeiro, a fim de que pudesse responder. Certo dia, o jovem, tendo se separado dos companheiros, gritou bem alto:

- Há alguém aqui?

- Aqui - respondeu Eco.

Narciso olhou em torno e, não vendo ninguém, gritou:

- Vem!

- Vem! - respondeu Eco.

- Por que foges de mim? - perguntou Narciso

Eco respondeu com a mesma pergunta.

- Vamos nos juntar - disse o jovem.

A donzela repetiu, com todo o ardor, as mesmas palavras e correu para junto de Narciso, pronta a se lançar em seus braços.

- Afasta-te! - exclamou o jovem, recuando. - Prefiro morrer a te deixar possuir-me.

- Possuir-me - disse Eco.

Mas foi tudo em vão. Narciso fugiu e ela foi esconder sua vergonha no
recesso dos bosques. Daquele dia em diante, passou a viver nas cavernas e entre os rochedos das montanhas. De pesar, seu corpo definhou, até que as carnes desapareceram inteiramente. Os ossos transformaram-se em rochedos e nada mais dela restou além da voz. E, assim, ela ainda continua disposta a responder a quem quer que a chame e conserva o velho hábito de dizer a última palavra.

A crueldade de Narciso nesse caso não constituiu uma exceção. Ele desprezou todas as ninfas, como havia desprezado a pobre Eco. Certo dia, uma donzela que tentara em vão atraí-lo implorou aos deuses que ele viesse algum dia a saber o que é o amor e não ser correspondido. A deusa da vingança (Nêmesis) ouviu a prece e atendeu-a.

Havia uma fonte clara, cuja água parecia de prata, à qual os pastores jamais levavam os rebanhos, nem as cabras monteses freqüentavam, nem qualquer um dos animais da floresta. Tmabém não era a água enfeada por folhas ou galhos caídos das árvores; a relva crescia viçosa em torno dela, e os rochedos a abrigavam do sol. Ali chegou um dia Narciso, fatigado da caça, e sentindo muito calor e muita sede. Debruçou-se para desalterar-se, viu a própria imagem refletida e pensou que fosse algum belo espírito das águas que ali vivesse. Ficou olhando com admiração para os olhos brilhantes, para os cabelos anelados como os de Baco ou de Apolo, o rosto oval, o pescoço de marfim, os lábios entreabertos e o aspecto saudável e animado do conjunto. Apaixonou-se por si mesmo. Baixou os lábios, para dar um beijo e mergulhou os braços na água para abraçar a bela imagem. Esta fugiu com o contato, mas voltou um momento depois, renovando a fascinação. Narciso não pôde mais conter-se. Esqueceu-se de todo da idéia de alimento ou repouso, enquanto se debruçava sobre a fonte, para contemplar a própria imagem.

- Por que me desprezas, belo ser? - perguntou ao suposto espírito.
- Meu rosto não pode causar-te repugnância. As ninfas me amam e tu
mesmo não parece olhar-me com indiferença. Quando estendo os braços, fazes o mesmo, e sorris quando te sorrio, e respondes com acenos aos meus acenos.

Suas lágrimas cairam na água, turbando a imagem. E, ao vê-la partir, Narciso exclamou:

- Fica, peço-te! Deixa-me, pelo menos, olhar-te, já que não posso tocar-te.

Com estas palavras, e muitas outras semelhantes, atiçava a chama que o consumia, e, assim, pouco a pouco, foi perdendo as cores, o vigor e a beleza que tanto encantara a ninfa Eco. Esta se mantinha perto dele, contudo, e, quando Narciso gritava: “Ai, ai”, ela respondia com as mesmas palavras. O jovem, depauperado, morreu. E, quando sua sombra atravessou o Estige, debruçou-se sobre o barco, para avistar-se na água.

As ninfas o choraram, especialmente as ninfas da água. E, quando esmurravam o peito, Eco fazia o mesmo. Prepararam uma pira funerária, e teriam cremado o coprpo, se o tivessem encontrado; em seu lugar, porém, só foi achada uma flor, roxa, rodeada de folhas brancas, que tem o nome e conserva a memória de Narciso."


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O grito é o choro

Eu caminhei por sobre pedras,
e escalei milhões de montanhas.
Tive areia a escorrer dos dedos,
e vida latente insana.
É que abaixo das colinas
por entre os rios e riachos e mares e oceanos,
o céu parece ser o limite.
Mas quando se chega alto
escalado e protegido,
o Céu não, não é o limite.
E gritei alto de lá de cima,
para que eu pudesse ser ouvida.
Mas me transformei em pássaro,
a incompreendida.
E quando desci ao solo imundo
chorei tão alto, tão alto que eu mesma pude me ouvir.
E agora quando eu chegar na montanha
na mais alta de todas elas,
chorarei.
Para que de lá eu me lembre do caminho de volta.
E quando eu voltar,
para o lamaçal dos solos vermelhos,
cantarei e gritarei.
Para que eu perceba que existe outro lugar.

CLARISSA DAMASCENO MELO
23/01/2012

domingo, 22 de janeiro de 2012

A história de dois lobos


Confundem-se no palco o lobo e o cordeiro saltitante. E os olhos de ambos ficam posicionados sempre a frente, sendo lobo ou cordeiro. É engraçado por que, de acordo com nossos preconceitos, o lobo deveria sentir coragem e o cordeiro ser a inocência inócua. Pois levanto meu dedo indicador e vos digo em sílabas tônicas que o lobo sentia medo. Eu não sei porque, mas sei que por dentro ele tremia de medo. Os olhos tremelicavam demais e, e o cordeiro ria-se inteiro. Porque rir na frente do perigo? Rir e provocar… medo? E o cordeiro fitava o  lobo, os olhos graúdos na direção do que podemos chamar de mal. Pois torna-se mal aquilo que… O que é o lobo?
Abaixo dos olhos do lobo pude perceber uma pequena chuva que se ia devagar, quase que imperceptível. Quase. Eu senti a chuva, a vi, a sou. E o lobo se manteve imóvel esses anos todos. Por hora olha a platéia que pede um espetáculo, mas espetáculos é tudo que o lobo não pode dar. E se o lobo não pode dar espetáculos, o cordeiro permanece sem fãs, instigando o lobo, amargurando-o. E o cordeiro segue-se de lã branca, polida, limpa. é olhado com piedade. “Pobre cordeiro que sobrevive ao lobo”. 
O lobo ousou dar dois passos à frente. A platéia gritava ferozmente. Os ânimos à flor da pele. O que o lobo queria fazer? E então mais dois passos e um quinto. O cordeiro, de tanto provocar, teria ali a sua resposta? De tanto se rir por dentro seria aquele momento que ele choraria? E então, diante de duas patas, o lobo teve a primeira vontade de engolir seu inimigo. Engoli-lo acabaria com seus problemas, a falsidade do cordeiro seria digerida por suas enzimas. E então o lobo abriu a boca úmida de dor. A saliva - ponto de erupção - encrostada em cada um de seus dentes, pôde ser vista pela platéia erguida de glória.
E então, ao ver o cordeiro miúdo no fundo do palco, a cabeça baixa entre as mãos, o corpo tremelicando, o lobo sentiu, no lado esquerdo do peito, uma profunda compaixão. Desse tipo que titubeia solene. O cordeiro, esperando pela morte certa, no entanto, nada sentia, somente uma profunda gratidão. Gratidão essa que foi embora ao ver seu inimigo recuar. E o sorriso apossou-se nos lábios de novo ao ver seu inimigo tomado de medo. Disposto, com isso, a continuar a arruiná-lo pelo resto de seus dias. Mesmo depois da morte.
CLARISSA DAMASCENO MELO

O apocalipse



Nota prévia: único texto meu que mais se parece com crônica, talvez o único possuidor de sanidade, ou meia sanidade, ou nada a ver com sanidade.
***
Que história mais fedida é essa que o mundo acabará em breve, em um possível apocalipse! Os humanos são mesmo muito tolos, ou cegos, não se sabe. Tolos e cegos, na verdade. Tolos porque ainda esperam que, após o mundo desabado, tudo melhore, descarregando a responsabilidade de fazer algo a favor ou contra; cegos, por que ainda não viram que o mundo já desabou, e feio! O que temos agora é uma carcaça abandonada, cheia de destroços e chuva miúda, caindo devagar, lavando nosso juízo insano.
O mundo não chegará ao fim, o fim já chegou ao mundo. Chegou com as primeiras notícias de estupro, roubo, politicagem – que faz referência íntima à segunda palavra, homofobia e intolerância religiosa. O mundo já morrera desde que o primeiro homem – ou primeira moça? Cercou um pedaço de terra e gritou: é meu! Mas esta história é bem narrada por outrem, não por mim. Os tolos que estavam ao redor foram tão tolos que permaneceram calados, mas os piores foram aqueles que, invejando tal ação, cercaram seu próprio lugar e gritaram em uníssono: é meu também!
A dança do fim chegou quando o primeiro homem empossou-se de riquezas materiais e saiu por aí dizendo ser o mensageiro de Deus na Terra, pedindo dízimos e vendendo pedaços da cruz que nem sequer esteve na terra de Cristo, trocando latifúndios no paraíso por pequenas migalhas dos pobres. Este já era o fim, o apocalipse, ou redemoinho, a vilania ou outro qualquer termo que você queira adotar!
O mundo jaz nas mãos do mal desde quando nós, de dois em dois anos, elegemos um ladrão para tomar partido e poder. Por que de dois em dois anos nós somos forçados a isso! E essa democracia? Que não te dá direito de decidir ou não se você quer votar ou quer ficar em casa vendo o circo pegar fogo. Eu ficaria em casa, comendo pipoca de microondas e assistindo a novela das sete, por que, afinal, somos alienados pelas novelas das uma, duas , três e o escambal de horas!
O mundo começou a decair quando as pessoas eram mortas por gostarem de outras do mesmo sexo, ou serem queimadas vivas por não terem vergonha de gritar isso bem alto. O mundo morreu quando mendigos passaram a precisar apontar armas em nossas cabeças para que, só assim, pudéssemos olhá-los e gritar: Meu Deus! Por que acima de tudo, nós gritamos Deus somente quando precisamos de verdade. É irônico por que quando se trata de fim de mundo, devíamos gritar por Deus desde que nascemos, mas deixamos isso apenas para o momento de nossa morte, como forma de rendição de pecados selvagens.
O mundo está acabado querido, e dessa carcaça sobraram destroços e música para que pudéssemos ousadamente, dançar em cima, pisotear a dor, embrulhar as lágrimas que supostamente agravariam a situação. Nadaremos por aí, rezando as orações decoradas à força, mutilando o resto dos nossos irmãos e dizendo em voz alta, para enganar os cegos e tolos que sobrarem: O mundo vai acabar. E eles vão acreditar! Pois são cegos e tolos para perceber que, na verdade, o mundo já acabou.
CLARISSA DAMASCENO MELO

Seja o que Deus quiser.


Como se começa a escrever se por dentro o oco de vaidade perfura? Como escrever e continuar a escrever se meu choro continua inócuo e, baixinho, continuo a… Eu não sei o que eu sinto.
É insuportável falhar, mas quando se falha depois de suar tentando é constrangedor. É fraco. Eu… Eu não sei o que eu sinto. Sei que sinto, e já que sinto, tenho de escrever. Meu escape, minha vitória. Minhas letras. 
Como traduzir em letras todo o esforço jogado fora? Gritar! Eu grito alto, ardente, com dor, por pólvora. Uma explosão de adjetivos não seria necessário. Quero uma explosão de úlceras!
O grande abalo sísmico que percorre minhas artérias é construído de desgaste físico, o abalo sísmico de minha personalidade, no entanto, perpassa todos os tipos de estafa - sem exceção.
E em plena quietude cantarei, quem sabe um dia ou noite, minha vitória por sobre todas as injustiças e apatia humanas.  E poderei dizer com dedos cruzados que perdoo a dívida externa dos outros, e após descruzar os dedos eu talvez esqueça de fato as coisas que perpassei com medo, talvez não.
E enquanto isso, carrego milhões de gotas de chuva dentro do peito. Talvez eu chova amanhã. Mas a vida é tão incerta. Quero dizer com isso que essas letras representam um desabafo. Quero dizer com isso que quero partilhar a minha dor, mas não há no mundo quem a suporte como eu faço.
E quero dizer com isso que estou preocupada. Estou, acima do ócio, preparada com o clichê: Seja o que Deus quiser!
CLARISSA DAMASCENO MELO

O menino que desafiou as flores



Esta história assusta-me como humana. Nela perpassa resquícios de chuva e intranquilidade, pois nela chove não só água - líquido pleno -, mas chovem gotas ásperas capazes de corroer enigmas.
E lá no fundo ainda ouço a voz do menino ardente. Que gritou alto, que perguntou, que falhou, que se aborreceu. Feito o pobre narrador.
Andava o menino sozinho. Dois ou três reais no bolso. Dois ou três é exagero. Ele possuía algumas moedas e um boneco que havia ganhado nos restos do Natal. 
(Oh) Fonte de matéria prima. O menino era uma belezura, como toda criança inocente. Tinha nos olhos o pré-anúncio de vaidade tola. Destas vaidades que se tem e não se sente. Mas nem por isso deixava de ter o azul dos olhos afinados. Reluzia por si só.
E é bondade demais. Vou lhes contar o final antes do fim: Esse menino vai sobreviver. Respirará, aguardem.
E de longe, ambígua, de guarda, o menino viu uma flor. Dessas que namorados dão para suas amadas - se é que existe amor, me permitam.
E boquiaberto com tal fragilidade, aproximou-se de ponta de pé, para não fazer barulho. Quantos anos tinha esse menino? Uns sete ou oito. A pele branca, rosada nas extremidades das boxexas gordas, fazia do menino um ser tão frágil quanto a flor, pois se via ao longe, desenhada em todas as partes do corpo, manifestando-se solene, finas veias recheadas com um líquido doce. Doce e rubro.
Mas e a flor? Ela estava quieta, no seu canto, com suas raízes cravadas no solo seco. Não fora cultivada por ninguém, nem ninguém nunca pensou em plantar outra flor do seu lado, não para gostar dela, mas para estar ali, presa na terra seca, como ela estava. E não seria só ela a sentir toda a dor do mundo. Ela teria alguém para reparti-la, e então a dor seria menor - não em dimensões, mas seria uma dor humana.
Esqueci de mencionar que se tratava de uma rosa. Era uma rosa, rosa. O tom claro de suas pétalas era doce, sincopada. Quem a via pela primeira vez se assustava um pouco com suas pétalas disformes, há quem se encantasse, mas tão raro isso era! E o menino aconchegou-se por perto. A rosa, mal humorada, pôs à vista todos os espinhos que impregnavam seu caule.
-O que quer?- Disse ela tentando fazer com que o menino fosse embora. É sempre assim: quando não se está feliz por dentro, a gente deseja que caia a maior das tempestades nas cabeças dos outros. A gente espera ver nos outros o sofrimento que se sente no nosso interior, para então nos entender. E daí nos decepcionamos.
-Me fala teu nome!- Disse a criança – Me diga seu nome!
-Eu não tenho nome!- Respondeu ela – Sou uma flor, e já que sou flor, meu nome é flor!
-Você não tem nome, mas se chama flor?
-Me deixa!
-Por que?
-Por que não quero ver ninguém!
-Por quê?
-Porque… – Respondeu a rosa – Porque ninguém me deseja, ninguém me adora. Por que eu deveria querer ver alguém?
-Mas você é uma flor… E é tão linda… Coisas bonitas deveriam ser amadas. Você tem amor?
-Amor?
-Sim. Mamãe me disse o que era amor.
-E o que é amor?
-Quando eu fiquei doente, mamãe chorou muito. Isso deve ser amor.
-Pois então – Respirou a rosa impaciente – Eu não tenho amor.
-Mas chove.
-E o que é que tem chover?
-A chuva é um choro que cai do céu. Você deve ter alguém no céu que te ame.
-Sai daqui. Eu não quero ver você.
-Você não pode me machucar. Pois então não saio.
-Eu posso te fazer sentir dor. Todos podem provocar dor. E sentir dor. E chorar de dor.
-Você fala como se sofresse o dia todo.
-Mas você o que sabe disso? É só uma criança mimada que mal sabe o que é amor! Sai daqui! – Gritou a rosa impaciente
Mas a criança, de tão inocente, puxou a flor do solo. Em um só movimento, foi capaz de desprender raiz por raiz do chão. E quando abriu as mãos a flor caiu murcha por sobre o solo, e nas mãos a criança sentiu um ardor estridente. Haviam pequenos furos banhados de sangue. E então a criança pôs-se em prantos. Tonta de dor – dor pequena para gente grande e grande para gente pequena.
E agachado ao lado da flor o menino pôde chorar. E a flor chorou junto por estar morrendo. E baixinho ela disse:
-Obrigado.
-Você me machucou!- Disse o menino aos prantos
-Obrigado.
-Você me furou nas mãos e agora estou sentindo muita dor.
-Obrigado
-Vai ficar me dizendo obrigado? Você me machucou e não vai me dizer nada?
-Um segredo: Vocês possuem dentro do coração algo que, não sei, machuca mais que espinhos. Vocês têm palavras ruins. Vocês têm uns aos outros. Mas, que coisa engraçada! Foi me fazendo mal que você me fez bem. Obrigado.
-Cale a boca!- E engolindo o choro o menino olhava a pobrezinha murchando – Te fiz bem?
-Se eu pudesse te beijar, eu te beijava. Agora não sinto mais nada. Estou e vou ficar bem. Vou morrer. Agora pode ir embora, por favor?
Mas o menino não respondeu. Estava boquiaberto e inanimado no chão. Deus! Eu disse que o menino iria respirar no final. Mas me enganei. O menino era pequeno demais para suportar tamanha dor. E as mãos sangravam. E a cabeça doía. E o menino morrera. E o céu começou a chorar. Lavou a flor que descansara e o menino que fora embora.
E a flor, mesmo morta, sentiu-se pela primeira vez amada. E o menino, morto, não sentia nada. Nem um pequeno pedaço de amor. No bolso ainda se escondiam suas moedas e o boneco. E só isso. Talvez, a única coisa que possuísse vida, fosse esse boneco.
E a chuva caía. E o solo molhou. E as raízes da flor beberam. E as mãos da criança se limparam. Mas flor e menino continuaram mortos. No profundo dilema que se chama vida, se existe morte. E o menino que respiraria, morreu. E a flor que tanto sofria, parou de reclamar. E a chuva lavou o resto de paisagem. E a história acabou.
CLARISSA DAMASCENO MELO

Amai-vos pois.



Quantas vezes você olhou para um céu cinzento e pensou em desistir? Por quantos dias você conseguiu manter-se oco por dentro? Por quantas vezes você falou demais quando, na verdade, nada era para ser dito? Por quantos motivos você acabou-se em lágrimas sem motivo nenhum? Já olhou para alguém que não seja você hoje? Não no modo literal do verbo, mas olhar por inteiro, para todos os lados, e para dentro…
Eu sei como é difícil perceber certas coisas quando, em nossa infinitude, somos tristes. Ou fingimos ser quem aspiramos ser. Ser, no sentido complexo da palavra. Viver é mais difícil. É por isso que vivemos, ou morremos. Não se precisa estar vivo para morrer, nem morto para viver. Há vários tipos de morte: a pior é quando se morre e continua respirando. É quando se morre e continua vivendo sem perceber. O jeito mais fácil é morrer para sempre, é por isso que não existe morte. Só se deixa de respirar, mas isso não quer dizer morrer. Há morte para quem acredita que há, assim como há anjos que só aparecem para quem neles acredita.
Nós temos a mania de criar situações e pessoas, não satisfeitos, ainda choramos quando descobrimos que a nossa verdade inventada sempre foi uma mentira desumana. A irrealidade te deixará feliz e depois te abandonará. Nós criamos nossa própria infelicidade e questionamos nosso Deus por isso. Pobre Deus, que está no céu. Ouve-nos reclamar o tempo todo e ouve-nos a questioná-lo a todo momento, sem, no entanto, nos dar conta que somos nós quem cavamos nossas sepulturas adjacentes a uma morte que inexiste. Difícil não é? Não.
Pare um minuto e seja Deus. Permita-se viver. Tenha paciência de sorrir, mesmo que seja um sorriso amarelo, sem significância. Aqueles sorrisos tortos… Comece por eles. Evolua, sinta o vento, a música, a dança. Sinta a você mesmo e a todo o resto. Mas lembre-se: amai-vos e contei-vos.
CLARISSA DAMASCENO MELO

A pena


Escrever o que escrevo agora é doloroso, é por isso que é difícil. Pois quando lembro dos momentos de ensinamentos que tive, uma dor de cabeça borbulhante me atinge. Mas preciso colocar isso para fora, senão explodo. E quando se dói, se precisa de música. A ouço agora, como um renascimento, enquanto que minha cabeça se esforça pra lembrar o que pretendo esquecer depois de colocar tudo para fora de mim. Prometa-me uma coisa: você deve aprender ao menos uma lição do que aprendi, em toda a sua vida, sem dor.
Eu tive uma amiga. Não dessas que aparece em um momento e vai embora. A tive a maior parte de minha vida. A amei. quando meninas, éramos juntas. Mas crescemos. Por algum tipo de ironia, crescemos. E a dor de cabeça miúda se interioriza em mim, aos poucos - sinto eu agora - essa dor cresce, assim como esta história que aconteceu de verdade. Mas, desde pequena, ela demonstrava ser, dentre todos os adjetivos atingíveis e grandiosos, fantasiosa. 
Ela fantasiava ser o que não era - talvez por isso acabou como está hoje - e, de pouco em pouco, desde menina pequena, conseguia o que era dos outros. Vos repito: ela sempre quis ter o que pertencia aos outros. E essa dor aguda me atinge agora o peito. Como um soco. Como ela encarnada.
E então crescemos. Eu, do meu jeito. Ela, do jeito mais torpe que se pode imaginar. Não éramos duas apenas, mas um pequeno conjunto de pessoas. No entanto, mesmo rodeada de gente, eu me sentia só. Tão só que, de todas as amizades antigas, digo que só duas ou três valeram à pena.
Ela, assim como hoje, mostrava-se efusiva. Corria por aí atrás de pessoas que pudessem oferecer o que ela queria. Mas eis um ponto que não entende: o que eu tinha para oferecer? Sempre fui isso aqui que se vê. Constante, sem nenhuma surpresa. Vazia, como uma bola de assoprar. Mas respeitem, cada um é como se permite ser. Mas, voltemos à minha dúvida, e a possível resposta: Eu tinha o que talvez ela mais queria, eu tinha amor cultivado no coração. 
E dirão vocês que ela, coitada, talvez não possuísse em casa a base para a construção do amor. Mas digo com tranquilidade - embora a língua se embole - que ela tinha uma mãe que a amava muito. Aguardem. Sua mãe era - talvez ainda seja - daquele tipo que sente dó de si mesma por estar no mundo. E eu sentia dó porque ela estava no mundo. Não por ela estar, mas por ela viver como vivia, e vive hoje.
Essa mãe não recebia metade do respeito que merecia. Minha suposta amiga a humilhava na frente de todos que tivessem olhos para ver. Ria dela, a magoava profundamente. Era como um ritual. Um dever - uma vingança. Mas daí, concordem, há um nó: quando isso acontecia eu me calava. Sei que qualquer pessoa com sanidade, poria um fim nisso tudo imediatamente, mas - pobre eu - quando me sinto ofendida, me enrolo feito uma lagarta que é tocada, como uma lesma que acabaram de jogar sal. Me sinto doída e quando sinto dor prefiro me calar, o que é um paradoxo.
Mas voltemos ao caso, essa minha suposta amiga, certa vez, se envolveu com outra pessoa pior que ela. A cena devastadora que vou vos descrever agora dói-me por dentro. Mais que ácido, é a representação fiel do que se entende de desprezo. Éramos jovens - 13, 14 anos - e essa pessoa, a mais torta que conheci no mundo - beirava os 21. Temo estar sendo explícita demais, mas, perdão, se eu não chegar no ponto máximo que pretendo, explodirei em mil pedaços aqui mesmo.
Lerão, talvez, personagens dessa história. Mas não me culpo. Dor maior me provocaram eles. E se sentirem incômodo, ou dor profunda no estômago, cheguei onde queria chegar. Por que vingança maior não havia. Essa dor no estômago é minha voz gritando, sendo digerida. São minhas unhas cravadas na carne. Sou eu dentro de vós, sugando, sugando.
Todos os dias, depois das aulas, ela se escondia aqui em casa, mesmo sem meu consentimento. Não demorava muito, e, de carro, um UNO, lembro bem, meio verde, meio morto, o ser amor - se é que se pode chamar de amor algo tão sujo - vinha buscá-la. Foi assim quase que todo o ano. Quanto a isso, nada vinha a mim. A dor começa quando descubro que ela me rouba - não só sossego - mas coisas minhas, de valor. Isso me fez doer. é desse tipo de dor que falo, desse fardo.
Nos primeiros dias, coisas sem importância. Mas existe aí a minha primeira lição: corte o que for ruim primeiro. Mas não cortei. Deixei as raízes fincarem no chão. Deixei crescer na terra úmida o desespero inócuo e sofri quando, nos terceiros dias, desapareceram coisas de maior valor. Mas não se trata apenas de uma ladrazinha, essa minha amiga, se trata de um ser disforme por dentro. Cheia de si. Quando o “eu” que existe dentro dela é nulo, porque, para o mundo, ela nada tem para oferecer.
Agora vou explicar minha segunda lição: não se incomode com o inferno de ninguém. A pessoa que a envolvia - de índole pior que a dela - possuía passado e presente que provocaram-me arrepios. Alertei-a sobre tudo, obviamente, mesmo ladra, ainda a tinha como amiga - por pura pena, talvez, ou por puro medo. Medo ainda não sei porque, mas no fundo de minha alma, eu sentia a necessidade de salvá-la. Mas quando a paixão é forte e a cegueira insana, tem-se nos ouvidos algodões. 
E os tristes dias se repetiam: Ela, gastando a vida. Sua mãe, gastando a vida com ela. A cada dia que passava, mãe e filha estavam esgotadas. E ainda sinto o cheiro da carne. Ainda ouço o choro do meu coração, que chove agora como no passado. E ela contou para ele o que eu havia dito. E ele - graças a Deus - tirou ela de minha vida. Mas brigamos para isso. (in)constantemente. Jamais fui tão repudiada por algo que julgo, ainda hoje, como a coisa certa a fazer.
Mas ela foi suja: saiu por aí inventando histórias aos montes. Criando, em sua cabeça, minha figura desmontada. E crescia em mim a vontade de me afogar. Porque, acima de minha liberdade, eu tinha juízes. E a errada da história fui eu. E a menina mentirosa fui eu. E a vencedora fui eu.
E ela rompeu comigo. Graças a Deus. O resto da história não posso contar. Mas há mais nela do que se possa imaginar. Há dois anos tudo isso aconteceu. E, durante esse tempo, adianto a você que ele não passou bem. Apanhou. Chorou. Mas nada aprendeu. Nada. Continua oca, continua sem valor nenhum dentro de si. (oh) A música acabou.
Ela, depois de um tempo, arrumou outro pior que o primeiro. Esse, tenho certeza, será sua lição. Oh, sim. E, hoje, enquanto eu estava esperando meu lanche ficar pronto na lanchonete, ela apareceu em minha frente, e virou o rosto, como eu fiz. Mas na fração de segundos em que meus olhos olharam para os dela, pude ver em sua alma, como ela está machucada. Por mais mal que ela tenha me feito, consegui ouvir o grito de socorro que vinha dentro dela. Eu deveria sentir ódio ou indiferença. Mas tudo o que - me surpreendo eu - tudo o que consegui sentir foi pena.
CLARISSA DAMASCENO MELO

Letras torcidas


Detesto pessoas efusivas, que falam demais, que nem sabem o que é ser ou o que é ter. Não gosto de pessoas cheias de amigos e que não possuem amigos nenhum, aquelas rodeadas por fantoches… Que controlam as cordas de todos. Não gosto das pessoas que mentem pra você e mentem sobre você para os outros, ou mentem sobre os outros para você. Pessoas que mal sabem o que são e que saem por aí dizendo ‘ser’ também são insuportáveis. Não gosto do estilo de vida de pessoas multifacetadas, que vestem-se de estampas finas todos os dias, escondendo atrás de si sua essência Não gosto de aparências, status ou posições. Detesto números e comentários. . Detesto , no apogeu da palavra, conotação e motivos literários, a existência de todas as pessoas.
E podem me julgar como quiserem, como já falei, não gosto de pessoas e certamente não gosto de você, com seus mil defeitos, suas mil e uma qualidades… Julgue! Sinta-se a vontade para fazer o que geralmente é feito: se vista com a peruca de juiz e sentencie a minha morte. Fará a mim tão bem… Mas tão bem que você desistirá.
Gosto de coisas explícitas, verdadeiramente verdadeiras, sem maquiagem do tempo. Gosto de sentir o cheiro do limpo, desmascarado, do interior… Sou lunática, errante, complexa e, dentre tantos outros “sou” é que eu me perco. Perco-me por que na verdade sou vielas, pequenas vielas que te levam para uma infinitude de caminhos. Quanto mais caminhos um homem possuir, menos direito de errar ele tem. Parabéns, eu sou vielas.
É estranho começar a falar de mim em uma narrativa em que eu sou o centro, mas que quase não apareço. Ficarei encostada, no canto, cruzando os dedos para que as palavras escorreguem mais devagar, que possam aparecer somente em seu tempo certo. Evitar pequenas fugas de idéias é prioridade, não se pode adiantar o fim, assim como não se pode adiantar a morte. Opa! Viu aí? Já falei demais…
É difícil falar de vida quando se há morte. Você teme falar demais e perder todo o tempo que lhe resta – Dois, três anos? Quem sabe?! Mas, mais difícil que falar da vida, é falar da morte. A morte não pode ser questionada, ou então ela virá pessoalmente te explicar tudo sobre tudo. Não se cutuca a morte com vara muito curta. E depois dela? Que sabemos nós? O jeito é esperar- com medo para os mais ajuizados, para entender depois que ela vir. Mas, a verdade, é que não importa a ordem dos fatores. Não importa o que vem depois da morte, morra primeiro, só isso.
Pior que questionar a morte, no entanto, é perguntar suas dúvidas à vida. Diferente da morte, a vida não te abraçará e te levará para um destino. A vida vai apresentar todos os destinos e vai te pedir para que escolha apenas um. As mil e uma possibilidades é que me fazem perder a cabeça. Vou ou não? Fico ou não? Perguntas como estas podem mudar uma vida inteira, direcionar para diversos caminhos… Viver sobrepõe todas as expectativas. Não é porque você respira, tem um coração que bombeia sangue para todo o seu corpo, células capacitadas, um cérebro pensante… Que você vive. Chega um determinado momento da vida que você descobre estar morto. E então se morre de novo, por que é difícil aceitar a não-vida-permanente.
Quero a voz macia do vento soprando ao meu ouvido. Quero um ambiente bucólico, às avessas de mim. Gosto de contrastes e por isso eu não posso estar no inferno. Não sei se o caro leitor já percebeu, mas falo verdade demais, são tantas que se embolam… Como já disse, estou tentando manter os dedos cruzados, mas eles descruzam por vida própria. São dedos, não humanos que são facilmente controlados, são dedos e possuem, como disse, vida própria.
Há verdades que devem ser ditas de voz alta, há outras que, se ditas assim, podem machucar. São essas as minhas favoritas, pois afastam de mim todo e qualquer ser humano que não me suporte. Eu não me suporto e falo a verdade para mim às vezes, amanheço murcha, me odiando ainda mais.
Por fim, um pedido: Eu não sei pedir. Sinto-me insegura quanto a esses assuntos. Escrever muitas vezes é mentir para falar a verdade. Assim como a nós mesmos, nada se deve ser lido ao pé da letra. Ignore alguns detalhes que deslizaram, vire um ouvido surdo para as partes desagradáveis, rabisque borboletas em cima dos trechos que você detestar. Infelizmente eu sou eu mesmo e por isso não removerei um milímetro de letra presente neste espaço.
CLARISSA DAMASCENO MELO