Precisarei
levantar para molhar o rosto duas ou três vezes, e caminhar pela casa para
sugar das paredes frias um pouco de palavras. Por que palavras fogem sem que se
perceba. E agora eu preciso mais delas do que elas de mim para seguir o curso
da existência. E a existência é infindável. Talvez alguns olhos lacrimejem,
outros talvez digam "é mesmo" e se esqueçam de tudo que se passou.
Pois o tempo... O tempo é meio traiçoeiro.
Antes de
tudo acontecer sem acontecer, vi minha vozinha fechar a porta atrás de si e
caminhar pela rua lentamente. Não que ela andasse lentamente, mas a dor em sua
coluna parecia ser estridente. E lá foi ela, pela sombra para não queimar as
feições brancas de seu rosto, a bolsa amarrada nas mãos.
Quando
passou em frente à casa de uma antiga amiga, seu coração pediu para que ela
parasse. E minha vozinha seguiu as instruções de seu Rei. Enfiou as mãos pelas
grades e agarrou, sem dó, um galho cheio de pimentas fresquinhas... Ela adora
pimentas misturadas na comida. A pimenta, em si, é o tempero do feijão e arroz
de todos os dias. A pimenta...
E,
arrancando uma a uma, gritou:
-Ângela...
Estou roubando suas pimentas!
Sorridente,
Ângela atravessou a porta de casa e, ao ver minha vó, sorriu ainda mais largo.
Aproximando-se dela, agarrou outros galhos de pimenta e começou a arrancá-las.
Enquanto faziam isso juntas, relembravam o tempo da brava e inesquecível
juventude. Das velhas dificuldades, e das novas.
Lembraram-se
das brigas compradas, uma pela outra. Da época da faculdade, da época em que
lecionaram juntas... E as rugas adquiridas com o tempo foram dando lugar a cada
pedaço de lembrança que resolveu aparecer naquele dia. E, em poucos segundos,
as duas voltaram a ter pele esticada, cabelos compridos, e vida corrida,
corrida demais.
Depois de
catar as pimentas, minha vó as jogou nas mãos de sua amiga e seguiu até onde
iria inicialmente. Prometeu que, quando terminasse, voltaria para buscá-las. E
assim o fez.
Depois de
dois dias, enquanto eu ajudava um amigo a estudar obras complicadas da
Literatura Brasileira, me deparei com a minha vó sem cor, praticamente
inanimada, quase que jogada nos braços de outra amiga sua, sendo carregada para
dentro de casa.
Vovó não
andava, arrastava as pernas em nós de câimbras, as sacolas do mercado estavam
na altura dos joelhos, os olhos... rubros de dor. Daquela dor calada, meio
insensível de tão sensível.
Sussurrando,
atrás de vovó, sua amiga disse a mim:
- Ângela
faleceu agora.
Estupefata,
me encontrei sem reação. O que dizer? Agarrei minha vó e a levei até a cozinha,
ela sentou-se enquanto misturava açúcar e água. Sua amiga procurava os seus
remédios de pressão enquanto eu ligava para aqui e acolá para dizer a notícia
triste.
Emudecida,
vovó chorou e disse que a vira há tão pouco tempo... Que trocaram lembranças, palavras...
O tempo
foi capaz de voltar nessa última conversa, nesse último tato. E, se bem
soubessem que aquela seria a última troca de carinho em sua amizade terrena,
esqueceriam as dores de ossos que as tomavam. Sentariam, tomariam chá, quiçá
uns biscoitinhos de maisena e relembrariam não só a juventude, mas toda uma
vida, toda uma glória.
Arriscar-se-iam
a dizer pequenos segredos, contar piadas velhas, rir daquele dia em que nada
deu certo... Olhariam o céu e diriam “puxa! Ele é lindo...” e ficariam bobas
com as flores que desabrochassem ali, sem pausa, em diástole de fé, confirmando
a existência de toda uma energia que nos governa.
E, quando
vi minha vó chorar de saudade, de frente para a morte de alguém tão querida,
cheirei a verdade: Cada momento nosso é, talvez, nosso último. Hoje, sabemos de
hoje. Amanhã virá em um talvez que ensurdece.
E o
tempero do feijão e do arroz, enrolado em um saquinho plástico, colhido pelas
duas, ainda está na geladeira, acessível. E nós, terrenos sem terra, aguardamos
só o momento de ingerir esse ardorzinho de canto de boca, misturar em nossas
vidas, o tempero.
E é mais
fácil dizer de morte quando se aceita que ela não existe. Sentimo-nos mais
confortáveis em falar daquilo que não se conhece por completo, é todo o
mistério que nos envolve. Outras dimensões, além de... Terra e chuva.
E as pimentas estão em
nossas geladeiras, esperando quem as engula. Aceite isso: um dia você colherá
pimentas também. Um dia, todos nós engoliremos o futuro.
CLARISSA DAMASCENO MELO