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sábado, 1 de março de 2014

Tossiu. Eu tossi. Uma massa branca endurecida saiu de minha garganta. Senti seu voo sair de mim e cair ao chão, assim como as grandes promessas. Toda manhã é assim: um pedaço de dentro de mim resolve conhecer o mundo de fora e - espanto! - decide não voltar pro lado de dentro.

Não: não é uma metáfora ou qualquer outra figura de linguagem; todo dia é assim. 
A massa branca, presumo, é algo acumulado na garganta durante o sono que resolve incomodar assim que o sol começa a brilhar seus primeiros brilhos. Levanto os braços e tusso, abro bem a garganta e faço força para me livrar do pedaço-de-alguma-coisa.

Juntei minhas dores com o mesmo carinho de sempre, concentrei-me em minhas pernas - centro do mundo -, e empreguei uma força feita de física moderna e me pus de pé. Os físicos que me perdoem o jeito atravessado: física não me serve para nada. Ironia ou não, deixo à cargo do leitor - meu juiz ferrenho e inexistente.

Eu, com minha dor de velha, pós-chegada aos anos de ouro (ou de chumbo), arrastei-me até a cozinha. No caminho, uma bandeira vermelha do partidão. Eu sempre olho para ela, é tão religioso quanto cuspir um corpo estranho. Uma saudade estreita de vê-la tremulando; uma dor apertada no peito - ao lado esquerdo da dor -, uma coceira interna enjoante por ter tremulado uma bandeira por toda a juventude e, graças ao ódio humano, à covardia humana, às coisas humanas, ainda ver quem não tenha quiçá as dores que eu sinto. Há quem não tem nada e isso deveria lhe ferir o caráter.

Sobre o mundo, pequeno mundo, vasto mundo, mundo mundano, mundo sem eira, beira, ética, caráter, filosofia - ao mundo, falta o mundo. Sobre o mundo, esse mundo que vos digo pensando não em mim, mas em minha manhã religiosa, em minha dor de velha, em minha dor de mãe, de doente mental, de doente da carne, do espírito, da fé; sobre o mundo vos falo silêncios agudos, miúdos, que vociferam e se anulam em meu peito. Guarde o mundo no bolso, finja fechar um dos olhos e guie-se em seu caminho com o olho esquerdo bem aberto. O mundo precisa de olhos esquerdos.

Cheguei na porta da cozinha e um susto apertou minha cabeça. Senti uma agoniação repuxar a minha nuca. Grãos de milho jogados ali. Quem poderia? A proeza de fazer renascer a lembrança e o grito, a lembrança e o castigo, o medo da chibata moderna, da sandalhada na cara, do cinto no bucho... somente aqueles grãos espalhados no chão conseguiram. Em um segundo - em menos que isso, talvez, quem sabe? - vi minha mãe com seus braços fortes me jogando de joelhos encima do milho moído por ela mesma, seu terço nas mãos escorriam para as minhas, ela dizia:

- Peça perdão ao senhor!

E eu não entendia por que o Senhor quereria que eu lhe pedisse perdão. Minhas danações nada tinham a ver com o senhor, eram minhas, minhas molecagens de menina sonhadora, de menina amarela do interior, que tem medo de tudo, de todos, tímida, calada, mas que conhece as explosões internas sem o prévio planejamento ou externações. Eu ajoelhava, muda, modesta, balbuciava os primeiros versos da ave-maria, valha deus, nunca aprendi a rezar um terço. Mainha gritava:

- Em voz alta! Deus precisa ouvir!

E me batia na cabeça, os mesmos tapas, as mesmas dores, os mesmos olhares trocados sem se ver. Eu não a via, aquela não era a minha mãe e eu nunca vi o Senhor - embora ele esteja aqui, nesse momento, meus olhos, cegos, jamais o viram. Ajoelhada, eu começava em sussurros, encarava o olhar de minha mãe e aumentava o volume até que eu travava. Não sabia continuar aquela reza sem oração, sem conversa sincera: naquela época, Deus era malvado.

Eu fechava os olhos e, em minha cabeça, velhas se arrumavam naquela mesma sala, ao redor de uma mesa redonda coberta com um pano de renda branca, uma jarra de água e uma bíblia que pesava mais do que eu e meus três irmãos juntos. As velhas começavam os cânticos, a gritaria e todas as outras coisas comuns de velhas. Eu, com os olhos fechados, tentava me lembrar o que elas diziam, por quem elas gritavam, mas não me lembrava de nada além do fio descompassado da barba branca de uma velha negra que deveria ter seus dois metros de altura.

E eu apanhava.

- Você vai pro inferno! Dizia minha mãe, os olhos esbugalhados, vermelhos, sedentos. Aquilo me assustou e amedrontou toda a infância. Até mesmo hoje, mais de sessenta anos depois, sou capaz de fechar os olhos e ver os dela. Eu ficava ajoelhada, por cima dos grãos, meu joelho ardia, sangrava, triturava-se, enquanto minha mãe gritava os versos para eu repetir em voz ainda mais alta. E enquanto ela fazia isso, eu me perguntava sobre os verdadeiros propósitos de Deus. Comigo a gritar repetidamente os gritos de mainha, com as mãos em concha, chorando e sangrando, desconfiava que o propósito maior de Deus era o de ficar surdo.

Ali, aqueles grãos bem arrumadinhos, jogados no canto da parede, me fizeram desadormecer tudo o que estava quieto, no seu canto. Enfiaram um dedo dentro de uma ferida eterna que não se cicatriza. Aquela dor era como se pus escorresse entre minhas veias e eu fosse feita de matérias descartável - Eu sou, nós somos, eles serão... mas a beleza da vida é passar sem perceber esse detalhe.

A rasa felicidade em ter aprendido o pai nosso durou algumas semanas até ter voltado à esquecê-lo. Eu não estudava, mal sabia juntar as letras, então eu prestava atenção no que mainha estava gritando e ficava repetindo no quarto. Deus enjoou de minha voz. Eu dizia pra ele: olhe só, é ensaio, pode ir resolver seus outros problemas e me deixe aqui ensaiando. Deus acabou me deixando no ensaio e jamais voltou quando precisava apresentar o meu teatro. Minha mãe chegava, eu dizia: "Deus!" - Mas não ouvia resposta.

Anos depois, uma batidinha em minhas costas explicaria que "tudo é assim mesmo, tudo tem de ser". Mas minhas amigas não sentiram o doer do sangue pisado a moer ossos e alma. Minhas colegas não sabem o pavor em abafar um riso tímido ao imaginar o céu com todas aquelas velhas chatas e barulhentas e como a casa de Deus era ensurdecedora e chata, só de pensar em todas aquelas velhas indo para lá. Falando em Deus, ele me deve algumas moedas, mas essa dívida material é entre eu e ele, ele e eu.


Ainda moça, ia pro rio que ficava distante seus dois, três quilômetros.  Em minha casa não tínhamos água e eu dava duas idas e duas voltas para encher baldes d'água. Um, eu trazia na cabeça, equilibrado; outro, equilibrava-se na barriga dura de verme e doença. Na volta, um cidadão sempre me parava para pegar de mim uma ou duas moedas. Eu separava pra ele da carteira de minha mãe. Quando ela me viu, pela fresta da porta, a mexer em suas gavetas atrás de sua carteira, levei uma surra e pedi perdão ao Senhor. Quando eu passei pelo homem sem as moedas, voltei a apanhar - mas dele, que com sua dor de fome, não raciocinava sobre o mundo. 

E quem é que poderia raciocinar sobre o mundo? Estamos morrendo de fome e de frio em todos os lugares e Deus. 


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