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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Três tempos verbais.

Tempo
É a coisa cordiforme
Que limita o fazer, o fazível e o feito.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Anã manca.

Na verdade, a verdade verdadeira é não pensar no que se pensa. Pois pensando no pensável, pressupõe-se que se pensa no pensado da mentira. E se eu muito penso, rebusco o que se pensa, eu penso para mentir. A mentira é uma anã manca, cujas pernas nanicas, correm e corroem. Parece bicho que gruda para morder. O problema é que mentira é mentira e acabou. E podem existir, juntas, duas mentiras que se abraçam ou não. Duas, três, quatro mentiras, porque não? Fato é que verdade é verdade única. Não duas nem três, nem um milhão, mas, uma somente. E ser uma verdade é ser maior que qualquer dúzia de mentiras. A verdade sai sem ser pensada. Pra que pensar pra dizer uma coisa que já se é? Mas a moda é criar dúzia. A moda é pensar em dúzias. Pois bem, já foi dito que se pensar em pensados pesados e pensar pesado sobre pesadagem, é o peso do pressuposto e da desculpa de se mentir.

Vão, galinhas, chocar dúzias.
Que eu fico perto do parar de raciocinar para colecionar, uma por uma, umas verdadezinhas que teimarem coexistir.

CLARISSA DAMASCENO MELO

domingo, 27 de janeiro de 2013

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Os moleques andam com as mãos em concha.
Dá-se trela, ouve-se estória.

"Mainha não tem nada o que comer, seu moço. O barraco darrente é meio miúdo, mas ninguém anda triste não Tá todo mundo junto Né não? Nóis num liga pro cheiro de lixo, nóis limpa o lixo. O povo da cidade nem tem esse costume, né não, moço? O povo daqui chacoalha e joga tudo fora Eu fico bobo Mas puquê moço? Tendi, vocês gastam demais é isso, né não? Nóis num gasta. Nóis nem come direito. Vou viajar pra xique-xique causdique lá tem lugar pra nois cumer. São Paulo? Deus é pai. Nóis quer só comida, não precisa de cimento não. Vamo, vamo ficar aqui Lá é bom, mas é ruim. Assim: é bom. É, é bom mas deve ser ruim. Não importa moço. Não importa. Quer que eu engraxe seu sapato? Eu faço rápido e é baratinho. As moedas, moço, eu junto pra dar pra mainha Além de pobre é meio gorda. Não, não, eu amo ela. Mas, moço, ei, vem cá.. volta, moço."

A língua é doce. A estória é o que amarga.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Amor e tempo.


Eu acredito no amor. Acredito em uma manhã que nasce sem pressa, sem falta, e irradia a luz do Sol depois da escuridão noturna, um copo de leite quente que esquente um peito frio, uma colher de sopa para um mendigo com fome, um quadro de cor para uma vida acinzentada, um afago em uma alma doente...
Disseram-me que as pessoas mentem, mas eu prefiro acreditar que elas gostam de escrever estórias usando a língua, a voz. Se existem duas realidades, por que, então, não deixá-las coexistindo? O mundo é triste demais para ser desacreditado, a vida anda supracitada, espremida entre prédios, e estamos entre os prédios, dentro dos carros.
As vidas andam ossudas, um pouco sem importância, um pouco de importância demais. E se me perguntam que horas são, eu costumo responder: o tempo não existe. E não existe. Existem números enfiados em uma coisa redonda com dois ponteiros que giram, giram, giram. Chamam isso de tempo, eu chamo de coisa. É coisa que mede o que não existe.
A vida é tão ossuda que puseram essa coisa no pulso e são controlados por ela. Também pudera: não há nada mais interessante que algo que controle tudo. Os atrasos são constantes, mas são feitos de propósito. Não há porque se atrasar se eu posso cozinhar em três minutos, lavar a roupa em sete, escovar os dentes em um. O atraso é descaração.
Eu acredito no amor. E só desacreditam nele por que ele está perdido entre os prédios, entre os carros, entre as empresas e os grandes negócios. Esconde-se em uma caixa tecnológica, está enterrado no extinto parque, abaixo do cimento. E ninguém tem tempo para achá-lo.

Dois finais.

O amor anda jogado
Entre os dias de ontem-amanhã.

Por debaixo das unhas,
Por debaixo dos pés,
Derramado nas calçadas.

O amor anda espremido
Entre a correria das pernas
Entre a correria da voz balbuciada
Do ônibus embaraçado
Nos túneis, no cipó.

Não existe tempo
Para caçar o amor.

E isso tem dois significados.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Sobre a criação do mar.


Num pedaço de concreto,
Deságuo meus nós,
Meus embaraços,
Minha timidez.

O carbono faz
Com que minha pele queime,
Com que meus dentes
Desistam de mastigar.

Minha boca quer comida mastigada.

Eu mastigo o vento
E a poeira cinzenta
Que voa por ele.

Eu respiro coisas que matam.

Adeus, mundo verde!
Estamos na Era do Metrô.

Metrô eu,
Metrô você,
Metrô de gente cinza.

Carbonizaram a paisagem.

Adoram açúcar,
O doce eletrônico.

Enchem-se de açúcar industrial
Usam fantasia de cetim no Carnaval.

Adoçam o café,
Os refrigerantes,
Os sucos em pó...
Esquece-se de adoçar a vida.

A vida segue supracitada.

Viver requer barro,
Água,
Sal.

Não há verde no quintal.

Eu quero mais,
Eu quero mais
Poeira.

Alô, alô, vida nova!
Vida nossa,
Salgada com lágrimas que secam.

O rio ficou seco,
O povo ficou seco,
A lágrima secou
E não lavou nenhuma alma.

Oh!
E eu que pensei ser o fim,
Que pensei ver o mundo se destruir,
Eu que pensei nas águas
Desaguadas pelos olhos,
Olhos claros do mar...

Pensei que juntar todos os choros,
De crianças famintas,
De mulheres doídas,
De homens em trapos,
De doentes mentais...

Pensei que juntar
Todas as dores,
N’um pacote plástico
E amarrar com arame...

Fosse criar um mar.
Não cria?

Colocar essa gente para chorar...
Talvez se fosse um mar
Um mar de coisa
Bota essa gente na coisa,
Faz essa gente nadar...

Joga essa gente no mar,
Deixa o mar levar
Deixa o mar lavar
Deixa o mar afogar.

Eis uma saída:
Mergulhar nas lágrimas.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Rostos no espelho.

Eu vejo um rosto.

No final da escada,
No meio do corredor,
Na praça lotada,
No elevador...

Em um texto,
Em um remendo,
Em um papel em branco,
No centro.

Eu vejo um rosto.
O rosto não me vê.

Vejo dentro de um ônibus,
Partindo...

Em uma bicicleta,
Em um inalador,
Em remédios redondos,
Em um copo d'água.

Vejo um rosto na água parada,
E na lágrima que goteja a goteira
Do Céu.

Chove, Céu.
Traga chuva pra chover.
Traga a água pra beber,
Chove, Céu.

Só não chove aqui
Onde eu vejo um rosto
E o rosto não me vê.

A face pontiaguda,
Cheia de curvas invisíveis,
Uma língua cheia de palavras,
Palavras mudas,
Sem som.

Eu escuto as palavras desse rosto.

Elas dizem o que eu já decorei.
Uma piscina,
Um verão,
Uma cidade...

Esse rosto me faz
Abrir feridas.

Não há tempo.


Eu vejo o rosto jogado no tempo
Caminhando sem pés,
Pelos braços fortes,
Pela língua muda.

Eu vejo o rosto
Nas nuvens,
Dentro de uma bacia com água e gelo,
Em um banheiro vazio,
Em um medo.

O rosto está espalhado na cidade,
Grita,
Chuta,
Uiva.

Em todos os lugares,
Em todas as cabeças,
Em todas as esquinas.

Mas
Não


Rostos no espelho.

CLARISSA DAMASCENO MELO


Ritmo


Um pedaço de renda,
Um pedaço de chita,
Um pedaço de corda,
Um nó,
Um ponto,
Uma agulha.

Um remendo,
Um remédio,
Uma dor.

Uma agulha,
Um ponto,
Um nó,
Um pedaço de corda,
Um pedaço de chita,
Uma renda,
eu.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Fins de tarde

Fins de tarde
Têm cor escurecida,
Amarelada,
Feito os dentes de teu sorriso.

Não tens meiguice,
E nem careces dela.
Mas sorrir,
Sorrir você não sabe.

Por quê?

Alguém comeu teu sorriso
No final da tarde.
Ou é o fim da tarde
Que lhe põe a pensar.

Pensar faz doer
E bagunça tudo.

Essa obstrução de caminho
Bifurca nossos nós.
Nós não nos sabemos ser.
E você não sabe segurar minha mão.

Não sabes ou não queres?

O abraço atrofiado
Encavernou meu rosto
E eu emudeci.

Sua fome e sua cede
Cheiravam a animal.

Talvez tu fosses o animal
De olhos fechados.
Ou fosses apenas os olhos
Que não sabiam abrir.

Não sabiam ou não queriam?

Se for agarrar minha mão,
Cuide de meus dedos,
De minhas unhas,
Dos meus braços.

Eu careço de estar entre mãos,
Por que eu mesma não sei segurar
As curvas de meu caminho.

No final da tarde,
Acertaremos nossas contas.

CLARISSA DAMASCENO MELO





Ranger


Era um amor viscoso, bruto e quente. Não há noite tão escura capaz de esconder tudo o que se foi e o que se há. Há sobras, migalhas das mordidas em vapor. Há o som de ranger de dentes e, no fundo, dentro de uma poça em chamas, um passado e um presente que o futuro há de engolir.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Sobre escadas.

O mundo é pequeno
E eu existo dentro dele.
Um poema é pequeno,
Mas o mundo mora nele.

Existem coisas que vão morar
Dentro de outras.

E dentro de outras
E de outras.
E outras.
Outras.

Eu sou pequena,
Vivo dentro de um mundo
Que existe em um poema.

Um mundo num poema
Um mundo poema
Um poema.

Eu sou pequena
E há coisas que existem dentro de mim.

Dentro de mim.
Dentro de um mundo.
Dentro de um poema.

Em um poema,
Em um mundo,
Em mim.

CLARISSA DAMASCENO MELO

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Sobre prédios verticais.

Se a massificação sobre o concreto persistir,
Vou parar de respirar.
Há poeira,
E sombras de prédios que chegam aos Céus.
Oh, Céus, o concreto chegou aí!

O cimento é cinza e descolore minha cidade.
Sou um robô.
Eu sou cinza, feita de aço.
Em minha cabeça, eles colocam o que querem.
Uma fórmula de Engenharia Civil.

Oh, Céus!
Os prédios de carbono chegaram aí!
E as bombas, as bombas...
Elas vão chegar também..
Vão explodir em três mil
Serão pedaços de fórmula
De Engenharia Civil.

Eu vejo concreto em meu rosto
E uma fila de carros,
Uma fila de metrôs,
Uma fila de gente atrasada.
Estão todos atrasados,
E correm.

Eles querem carros,
Eles querem química,
Mas esquecem a química do corpo,
A química do beijo, do cheiro,
A química da morte.
Esquecem que morrem,
E já vivem mortos.

A cidade está cinza,
E cresce verticalmente.
O céu é o limite dos pequenos endividados.
O latifúndio cresce
E crescemos junto com este pecado.

Oh, cinzas de rosas,
Por que insistem em voar?
E se voam, porque não voltam..
Não querem voltar?

Eu as entendo, rosas.
Entendo que o mundo é pequeno
E querem-no grande, coberto com Cal.
E crescem pra cima, por cima de nós.

Mas serei a flor nascida do concreto ainda verde.
E terei pouco tempo de vida.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Plástico-Bolha



Eu varro as formigas de meu quintal.
São pequenas e irritam a minha pele,
Têm a mania cruel de subir em mim e em mim escalar barreiras,
E só por isso as admiro.

Passo a vassoura com força
E as faço voar longe.

Eu varro formigas sem crueldade,
Somente por precisar.
E tem gente que me varre de suas vidas.
Sou descartável.

CLARISSA DAMASCENO MELO

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Sobre biscoitos.

Se estou triste,
A culpa é minha
Que deixo meu eu
Levar-me a caminhos
Pontiagudos do ser
Aquela que sou.

Se estou triste,
Os olhos lacrimejam
Enquanto, e a qualquer segundo em que
A vida larga de tentar ser
E se finda, na esperança
Que tentou.

Se estou triste,
A culpa é dos bosques
Que fazem-me lembrar
Os verdes-flores de minha vida.
E, vendo-os em esquinas,
Em praças
Em casas de praia,
Eu choro por ser quem sou.

E meu choro é mudo,
Valente,
Engasga-se no próprio soluço
E me entristece
Faz me dura e dura permaneço
À toda essa gente.

CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Sobre bússolas, mapas e tempo.

Ouviram-se gritos alados
Que vieram de lugar nenhum.

Olharam as bússolas e os mapas...
Quebradas, rasgados...
Destruíram o mundo!

Pois o mundo é frequentemente
Gritado
Resumido
Em um objeto pequeno,
Em desenhos de cores.

E eu não tenho nada contra os objetos pequenos
- Pois eu o sou bem sido.
E não tenho nada contra as cores dos desenhos
- Pois sem elas de nada nos vale a dolorosa e quente infância

Mas estou dizendo
Que os objetos pequenos e as cores dos mapas
Receberam tinta humanas

Então, se destruíram.

O grito é alado,
Mas entenda: do chão não quer sair.

As bússolas quebradas,
As recebemos nas escolas, nos empregos, nos impostos.
Fazem-nos olhar para o lugar errado,
E nos convencem a ir lá.

Os mapas rasgados são os que desconstroem o nosso caminho
Aquele caminho traçado por uma mente de criança,
O que fora imaginado por uma menina ou um menino
Enquanto brincavam de pega-pega ao ar livre.

Mas o ar fora condicionado,
Impresso em folhas de jornais silvestres
Cujas letras transportam o supérfluo ao entendível
E o entendível ao supérfluo.

Pois quem se importa em correr na grama?
Sujar-se na lama?

Querem as sujeiras somente se estas forem feitas
De concreto massudo.

Ninguém quer arranhar-se na areia molhada
Por ter medo da raiva do mar.
Aliás, é um pouco disso:
Esse medo tolo que faz nossos joelhos sangrarem.

E há ainda os relógios de cozinha
Que fazem de dois ponteiros
Os donos do tempo.

Se nem o grito é nosso,
E nem ele quer voar...
Porque então ainda se mede o tempo?

Para saber por quantas horas nos condicionamos à nossa vida de nada?
Ou para calcular quanto tempo de sermos nada ainda temos?

Pior: Esses ponteiros trabalham
Para que possamos acreditar que a bússola e o mapa
Não estão mais entre nós...
Acreditar que já são coisas engolidas pelo próprio tempo.

Engana-se, porém, aquele cujas ideias aceitam isso friamente.
O mapa nosso resumiu-se a um roteiro cíclico e sem fim
E nossa bússola perdeu seu Norte,
Anda, roda e vira, igualmente em todos os Pólos.

E nós,
Donos da razão e da verdade,
Achamos que o mundo evolui a cada era.

CLARISSA DAMASCENO MELO