Que a verdade, senhor, seja
dita: não pareço eu mesma no instante em que nasço de manhã; nem me
reconheceria na imagem de um espelho caso este me ficasse à frente logo quando
anoitece. Não que eu me seja muitas ou me seja, vais presumir, protótipo de diversidade.
Sou estranha a mim e, mesmo você, que me lê, não me reconheceria. Dirá: ué, tu
não escreves aquilo que é teu? Como aquilo que é teu não pode ser você?
De certo, confirmo, digo e
morro a dizer que cada linha minha é nascida de mim mesma. São meus contos
universais que somente eu conheço. Não existe fábula inventada que não seja a
verdade de alguém, creia. Mas a questão-quesito é mais imóvel que tu pensas.
Entre o dia e a noite – e essa ideia roubo, eu, agora, do Shakespeare -, existe
mais do que sonha sua vã filosofia.
Então, agora, és capaz de notar? Não sou muitas, nem várias. Eu só me
sou. E eu sou um espelho quebrado que se parte em vários pedaços. Sou uma que
se divide, e então, sou várias. Engula, você, mais esse paradoxo.
Se estiveres a franzir a testa
e a julgar-me cabulosamente, então, leitor, cheguei ao meu ponto máximo de
estupidez; então, cheguei ao fim. Leia-se: se me esgoto a desenganar-te e
fazer-te tu a me debochar e denegrir, ah, cheguei, sim, ao meu final querido.
Não, não despeço-me, pois. Que sirvam de lição os dogmas aprendidos e devorados
que não nos servem para nada. Tu ficaste trancafiado a quatro paredes,
fizeram-te engolir a gramática, os cálculos, as leis da física-inútil-útil, mas
jamais – por favor, creia – fizeram com que você engolisse a si mesmo.
Em sua escola nunca te disseram
que tu eras livre para não estar ali.
Que tu podias sair a passear pelo pátio, beber água no bebedouro de fora
ou, vamos mais longe, pegar suas coisas e ir-se embora para casa ou para a
praça onde passariam aquelas pessoas populares. Não. Fizeram-te acreditar que
tu deverias continuar ali, sentado. Não foi, leitor? E, se em algum momento, tu
puxares da memória que um dia alguém lhe disse isso, favor reconsiderar: se
disseram, foram de uso à psicologia-inversa. Disseram só para que tu não
acreditasses e então estou certa.
Disseram para você que se você
dormisse sem rezar, você teria pesadelos. E mesmo que tu acordasses no meio da
noite dizendo que havias rezado, e se chorasses com medo dos monstros deitados
em sua cama; falar-te-iam para continuar rezando. Não que a reza não te sirva –
e esta serve, mas é que lhe valeria muito mais se te dissessem que você mesmo
poderia levantar-se para acender a luz. É isso: ninguém te ensinou a acender a
luz.
Disseram que você deveria
oferecer sua merenda para o colega do lado, mesmo que este não tenha te
desejado bom dia. Eu, leitor, te alforrio de todas essas leis que te
enquadraram. Se quiseres comer tudo sem oferecer a ninguém, o direito é seu.
Mas faça sabendo que, assim, não és digno de aceitar o que quer que seja de
ninguém. Eis que tiro as grades e ponho as cordas.
Fizeram-te supor que homem não
chora e se tu, que me lê, for homem, digo que, por favor, derrame agora todas
as lágrimas que não te deixaram derramar. Homem chora. Todo homem é, também,
mulher. E se tu és homem, dê-me mãos. As minhas, de moça simples, de
jovem-velha, de menina-mulher, de vadia e de anã, estão soltas. Jazem por aí e
se limitam ao labutar da criação. Mas, se tu que me lê for moça também, dê-me
olhos. Talvez os teus já tenham visto um caminho-sonhado que eu jamais vi. Se
és moça, deixai-me ver caminhos novos.
Fizeram-te crer que teus pés,
embora teus, haveriam de seguir caminhos traçados por outras mãos. Discordo.
Embora os caminhos já tenham traços prontos, eles ainda são teus. E se tu não
errares caminho algum, jamais saberás qual é aquele que lhe escreveram. Na
dúvida, erre todos os passos. Deixe-os marcados na areia da praia, não os deixe
passeando pelo cimento. E mesmo que lhe seja forçado o uso de ternos e de
roupas pesadas, vai assim mergulhar no mar. Não há peso que não resista ao
sal-salgado e à água.
E, agora, comigo, leitor,
julgue: passou a vida inteira acreditando no que lhe fora dito. Se disseram-lhe
sim, imbecilmente, tu dizias sim. Se te negavam, fazias birra por uns segundos
e, logo mais, trocada por doce, calavam a sua boca. Se te fizeram crer que
faria frio se tu não preenchesses teus vazios, tu fizera questão de jogar
dentro de ti qualquer coisa que lhe pusesse em zona de conforto. E foi assim.
Justo. Se é para a morte que se
caminha, por que tu deverias acreditar que todos mentem? Se não souberes
responder, creio que tenhas vivido de forma imbecil. A imbecilidade, embora
doce, lhe deixa vulnerável ao que quer que seja. E agora vou falar sobre aquilo
que nem eu nem você conhecemos. Talvez, a gente faça juízo disso daqui a alguns
segundos, alguns meses, anos, ela é tão certa que é incerta. Se tu sabes que
vais morrer, então, porque ainda continuas a colonizar sentimentos?
Porque tu engarrafas aquilo que
és. Se tu não és peça do tabuleiro que lhe impõem, saia dele! Vamos, leitor.
Saia da sala de aula! Acenda a luz! Engula, sozinho, a sua merenda! Chore!
Caminhe! Erre caminhos! Só, por favor, por você, que um dia verá a morte; nunca
deixai de fazer aquilo que não passa de ser você mesmo porque disseram que de
outra forma seria melhor. Se estás em vida, a vida é sua. Ela é tão tua que tu
a terá mais vezes e não me assusta o fato dela já ter sido tua outras vezes.
Morrer é besteira.
Último pesar: só deixe que lhe calem a boca se o fizerem com um beijo.
CLARISSA DAMASCENO MELO