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terça-feira, 31 de julho de 2012

Passado

Deixei
de tocar estrelas
de sorrir em festas
de ouvir meu coração.
Deixei
de colorir o cabelo
de me olhar no espelho
de pedir ajuda
de te entregar minha mão.
Deixei
de pedir ao vento
que levasse meu desapontamento
pra longe de minha paixão.
Deixei de sonhar meu sonho
pra perder minha noite
dizendo "não".
Deixei
meus pés intactos
duros,
presos no chão.
Deixei
de viver minha vida
por sentir medo da rima
que trazia minha razão.

CLARISSA DAMASCENO MELO

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Correção gramatical


Conserteza
qui issu di disdizer
u que tá erradu na gramatica
é cois di genti chifrin.
purque se eu falar certin
e não diser
o qui si tem pra dizer,
as criança vão passandu fomi.
Caus' di que,
enquantu tentam corrigir a palavra
lá no meio do sertão
tem gente que tenta corrigir
a falta d'água
e de pão.

CLARISSA DAMASCENO MELO

domingo, 29 de julho de 2012

Um tal crioulo fugido.



Em algum lugar, 
aqui ou lá, 
sei que vive e pulsa.
 Sei que ainda cheira e ri. 
Que ainda chora e vive.
 Que conhece o desconhecimento 
e desconhece o conhecimento. 
Sei que respira e flutua. 
Que olha e vê, 
(e não vê o que olha.)
Sei que há um lugar em que 
habitas agora. 
Durante a estada na Terra, 
carregou pedaços do mundo.
Pedaços de tudo.
E no mundo caduco,
Ainda encontro pedaços de ti.

 

 
Rafael Mendes.

 

 
CLARISSA DAMASCENO MELO

Trauma

Você sente 
o seu sentir 
na medida em que 
o "seu acontecer" 
vai dando forma 
ao seu pensar.

 
CLARISSA DAMASCENO MELO

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Cantar de Galo.

Eram seis e meia da manhã.
Saiu de casa assim que o galo que dormia na cozinha cantou.
Coitado. Mal sabia que era seu último cantar.
Ou talvez soubesse e por isso fez questão de cantar mais alto.
Jogou umas roupas na sacola.
Saiu pisando fino por cima da calçada.
Era hoje, ou nunca mais.
Disseram que, se cedo fosse, capaz de começar a trabalhar na próxima semana.
Entrou no ônibus.
Sentou-se na primeira cadeira vazia.
Ali, começou a idealizar-se após aquele dia:
Ela pagaria o tratamento mental de seu filho caçula.
Compraria a boneca cor de rosa para a sua filha do meio.
Traria chocolate para o filho que andava sempre gripado.
Sandálias novas para o que mantinha os pés no chão gelado.
Pastel para a mãe que nem sequer andava.
Óculos novos para o marido desempregado.
Um sofá.
Uma geladeira.
Almofadas.
Duas camas.
Uma para ela e ele.
 Outra para as crianças.
A mãe poderia continuar dormindo na cadeira de rodas.
Tintura para a casa.
Brincos novos.
E piiiiii piiiiii piiiiiii.
Eis que, de gota a gota,
o soro descia-lhe veia à dentro.
As pálpebras arroxeadas foram se fechando aos poucos.
De-va-gar.
E seu filho caçula continuaria maluco.
A sua filha do meio, sem boneca cor de rosa.
O filho gripado, sem chocolate.
O chão gelado ainda seria do menino descalço.
Sua mãe, sem pastel.
Seu marido, sem óculos.
Nenhum sofá.
Nenhuma geladeira.
Nenhuma almofada.
Nenhuma cama.
Somente a cadeira de rodas – ocupada.
Sem tintura. Sem brincos.
E o galo - que morreria - fez questão de cantar ao entardecer.
Pois talvez soubesse ele que morrer é dom de raros.
Do sonho sobrou somente uma notícia na rádio,
a voz enferrujada:
Ônibus vira na estrada. Ninguém sobreviveu.


CLARISSA MELO

sábado, 7 de julho de 2012

Eleições.

Semana passada pude assistir de camarote a um debate político. Duas mentes debatendo sobre a atual situação política em que estamos inseridos. Enquanto debatiam e jogavam, um contra o outro, argumentos selvagens sobre politicagem corrupta, roubos explícitos, impunidade... pude perceber que todos os argumentos disponíveis eram..., pasmem, clichês.
Se, até os nossos argumentos tornaram-se clichê, imagino eu, de boca aberta, o que se tornou nosso sistema político. Primeiro, você só decide se quer votar ou não quando tem 16, 17 ou mais de 70 anos. Nesse meio tempo, você é FORÇADO à exercer democracia. Democracia? Segundo, as opções de voto são sempre restritas. Quem são os candidatos? Ah... lembrei: aquele que na última eleição deixou bastante gente sem receber salário contra aquele que desviava dinheiro em seu último mandato. É aquela moça super gentil que não fez nada em seu governo. É aquele senhor, pai de não-sei-quem. E a lista, acreditem, é enorme, cheia de gente assim.
Sinceramente, não sei o que fazer com meu voto. Só me resta a tecla branca. Vai doer quando clicar nela, mas, antes ela do que uma verdinha com poder psicodélico. E, cá entre nós: que ninguém saiba do meu voto! Pelo menos isso: já temos privacidade. E, olha que interessante: ao menos um ponto fora do retrocesso. Será isso o começo de uma evolução? Aguardemos.
É ano de eleição. De voto. De escolha. E, como não deixaria de ser: de gritaria, competição, promessas. É chegado o momento em que somente uma escolha pode mudar o rumo dos ventos. E, enquanto carros de som competem em decibéis por uma vaga em nossos ouvidos, nossas cabeças estouram. Não basta os horários políticos da TV, é feita politicagem de forma desumana nas ruas. Posso garantir: candidato nenhum vence no volume do grito. É difícil demais entender isso?
Há, também, outra coisa que me tira a paciência: aquelas carinhas coloridas, estampadas no papelzinho, com um sorrisão (geralmente, eles sorriem. Se não nos ganham pela beleza, ganham pela simpatia). Em ano de eleição, costuma-se chover rostinhos sorridentes na rua. A poluição, portanto, torna-se generalizada: sonora, visual e mental.
E, cheguem mais perto! Aproxima-te mais pra saber mais uma verdadezinha que resolveu escapolir de mim: Em ano de eleição, se não houver cuidado, os hipócritas passam a ser nós. Verdade! Nós. Hipócritas. Os que reclamam demais. Os que veem defeitos demais. Mas, quantos dos que reclamam fazem realmente alguma coisa? Reclamar e não fazer, desculpem, é hipocrisia.
Não basta somente destampar o bico da boca. Não basta somente abrir os ouvidos e olhos. É preciso levantar o bumbum da cadeira, movimentar as pernas, requebrar o quadril. Não somente em ato de dança. Mas em ato de amor pelo lugar em que se vive. Porque, embora o mundo já esteja cheio de gente reclamona, é disso que ele menos precisa: uma legião de reclamões.




CLARISSA DAMASCENO MELO

terça-feira, 3 de julho de 2012

Epifania.

Era para nascer. Nasceu.
Era para crescer. Cresceu.
Era para se reproduzir. Multiplicou.
Era para envelhecer. Envelheceu.
Mas ninguém ensinou a viver.
E-nem-viveu.

CLARISSA DAMASCENO MELO

domingo, 1 de julho de 2012

Verbalizar um sentimento.

Eu grito que não sinto.
- Não sinto.
E a confusão do sentir
É sentindo que se sente que sentir
Mesmo sem sentir
É sentir.
E se eu grito não sentir
- É que sinto.
E o que sinto,
Se não meu,
De quem é?
CLARISSA DAMASCENO MELO

Descobrir-se(mento)

Descobriu um problema nas válvulas:
Direita Esquerda.
Salgou os olhos em água de chuva.
E o peito nem doeu:
Doer, já doía. 
E, enquanto o sangue lutava pra passar por entre os cantos do coração,
Derretia na boca
Uma bala doce
de café.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Janela


Hoje
Quando olhei  pela janela,
descobri que não tenho janela.
Nunca a tive em meu quarto.
Era
um
quadro
que
não
mudava
nunca
de
lu-gar.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Descotidiano


A cena embaçada.
A cama de nó.
O quarto vazio,
Cheio de pó.
O quadro na parede não conversa
- Grita.
Sem café.
Panelas limpas.
Jornal ainda não chegou.
Cena congelada na TV.
Óculos de Sol.
Filtro solar.
Mar por acaso.
Trabalho.
Ócio.
Ócio.
Ócio.
Lar, não-doce lar.
Saudade.
Vassoura atrás da porta.
Porta atrás de quem a abra pra fazer sorrir...
Um ex-coração.
Controle-remoto. Sofá. TV. Prazer.
A cena congela do lado de fora da caixa.
E tem sido assim
Desde que, em fim,
Ela foi embora.

Clarissa Damasceno Melo