Páginas

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Se chegar, bata a porta.

Quando chegares, bata a porta. - Disse em um assovio - Traga as flores que pedi, as colocarei no jarro, na mesa do jantar de hoje à noite. Não falte. Poli meus melhores pratos para te receber de volta. Tu saístes daqui tão apressado que esqueceu de levar algumas coisas. Esqueceu as chaves de seu carro e do apartamento de sua mãe, esqueceu seu casaco pendurado atrás da porta, esqueceu suas gravatas - aquelas, que eu ajeitava em você pois você nunca foi capaz de dar um nó. Aliás, em que tu fostes capaz? Tu fostes capaz de ir embora sem levar a mim. Mas, já que voltas, entre em casa e bata a porta. Se trouxer flores, traga-as amarelas, penduradas em um buquê. Estás lembrado das minhas flores favoritas?
Farei teu prato favorito. Comprei os peixes. O vinho. Ah, o vinho... E comprei uma toalha nova. Você costumava reclamar da toalha antiga. Lembra-te? Se não lembrar, entendo. Tu reclamavas de tantas coisas... Da pia do banheiro, que deixava a torneira gotejando; do sofá, que fazia um barulho engraçado quando tu se jogavas nele; do chuveiro, que sempre estava ou muito quente ou muito frio; de mim, que não parava de falar nunca. Mas, quando tu cruzastes a porta pela última vez, eu calei a boca.
E, já que voltas, darei espaço para que fales também. Diga-me, como vai a sua nova mulher? Soube que ela é ainda mais magra que eu e tem cabelos lindos. Parabéns. Você conseguiu. Diga-me... Tu dizes para ela que será eterno também? E ela, quando o escuta, está a dobrar tuas blusas como eu fazia? Está a preparar-te o que comer? Está a retribuir-te com um beijo de 'durma bem'? E você, já decorou quais as tuas flores favoritas? Qual a música que ela ouve com mais frequência, querido? Se tu sabes, então ela é melhor que eu. Tu nunca soubestes quem eu era. Ou o que eu fazia. Ou o que eu queria ser. Tu só sabias que, à noite, eu estaria a ler um livro calmo em nossa cama.
Nosso amor sempre foi intransitivo. Nunca precisou correr a casa, nem as escadas, nem em lugar nenhum. Sempre só precisou existir. Mas, como tudo o que existe, acabou-se em uma segunda-feria. Tu dissestes adeus e eu ouvi, emudecida, as palavras tuas. Fiquei sentada, ali, por dias, sabia?
Com o tempo, percebi que as chaves de seu carro não estavam mais sobre a escrivaninha, nem teu casaco, atrás da porta, e eu, eu nunca mais dei nó em gravata alguma. Tu sumistes por completo. Tudo sumiu. O peixe, o vinho... Até a porta está emperrada, sem ninguém entrar. Apenas eu transito entre o dentro e o fora do que um dia foi nosso, do que, um dia, foi feito de nós pra nós. Tu desatasse o nó.
E, agora, olhando em redor... É melhor que tu não venhas. Não. Não venhas. Eu sei que não trará contigo minhas flores favoritas, e sei que dirá que tu não gostas nem de peixe, nem de vinho, nem de mim. Sei que dirás que não existe outra mulher. Não venha. Tu sujarás o meu tapete, como fazia; e o forro do sofá. E me deixará irritada. Dirá que não mudei a toalha da mesa. E achará ruim os pratos que poli. Não. Não venha. Se chegares, finja que não está. Aliás, finja que está. Ver-te inerte me lembra o tempo que foi nosso. Tu sempre fostes inerte.
Mas, se chegares, bata a porta - Disse em um assovio - Não gosto do vento entrando. Aliás, deixe-a aberta. Não. Não chegue. Não. Não chegue.
Tu trará teu filho que não é meu. E ainda me mostrará quão linda é a tua nova mulher. Seu filho vai estar falando as primeiras palavras, mas não saberá meu nome. Não traga ninguém. Não venha. Não traga flores amarelas. Não traga a sua mulher. Não traga seu filho. Eu não comprei vinho. Não comprei uma toalha nova. Está tudo velho. O tempo passou, querido. Mas ainda é ontem. Vais chegar? Se chegar, bata a porta...


Fechou um olho, fechou o outro.
Deitada, tinha as mãos descansadas sobre o peito.
A boca, trêmula, ainda balbuciava na escuridão.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Nenhum comentário:

Postar um comentário