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sábado, 31 de agosto de 2013

Em um pedido, me movo.

Como é triste a fome dos homens!
A fome que mata e congela
Que desumaniza e absorve
Que dilacera e destroi...

Meu pai, se fores abrir a janela
Para ver o mundo ou a calçada
Ponha, na altura dos teus olhos,
A esperança que inda nutres no peito.

A pequena esperança que nutristes
Quando, em concha, pusestes tuas mãos
Para receber nosso Cristo, Teu Corpo e Teu Sangue.

A mesma esperança deposites defronte teus olhos, pai
Para não sofrer de lacrimação assim que vires
Uma criança cortada ao meio, em choro, por fome e miséria.

Não tenteis, meu pai, salvar o mundo
Não se salva assim, tão de repente, algo tão perdido...
O mundo perdeu-se, meu pai, foi-se embora, voou daqui.
Tenteis, em seu lugar, mudar teus passos.

Mas não como quem muda de esquina, de rua ou praça
Tenteis mudar o mundo como se fosses arrancar - de um buraco,
Todas as vidas dos homens, todos os olhos desses homens,
Todos os mundos desses homens.

E reconstruirias, pai, pedra a pedra,
um novo mundo.

Livre dos imperialistas, dos falsos e dos inconsequentes,
Livrarias o mundo inteiro dos falsos profetas
E da fome, da seca, da cerca
Do medo, do luxo, dos barões
Dos grandes e miseráveis barões.

Quão dolorida é a voz do homem
Que com seus braços de aço
Ergue muros contra seu povo!

Os hematomas, as jaulas, as mentiras e a tortura...
Ao latifúndio equiparam-se,
Sobre as terras, não me movo, não me calo,
Eu me espalho e me rebelo.

Meu pai, faz de mim olhos, faz de mim nervos, faz de mim coragem
Ponha-me de frente aos homens ferozes,
De frente aos roedores, aos exploradores,
Aos desprezíveis...

Faz de mim, pai, a surra mundial
A surra que destruirá aqueles que militam contra o povo.

Faz, pai
Faz.

Clarissa D. Melo

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Em protesto, não nasço.

- Mas concorde comigo: assim que nasces, tu cerras o pulso em protesto.
- Protesto a quê?
- Nascer.

Clarissa D Melo

Sobre censura.

Eles gritam: surras vazias.

No meio da fumaça
Dos cartazes, das gargantas:
Um brilho vermelho.

Mas olha que ironia:
Para provocar a alergia
Moisés empunhou um cajado
E por todo lado,
O mar vermelho se espalhou.

Tirem-me dessa tirania
A verdade está no ar:
Concorde que é covardia

Esse grito que me impede de gritar.

Clarissa D Melo 

Verbiagem.

À você, um verbo:
Passar.

Clarissa D Melo

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

- O que aconteceu, Clarissa?
- A inspiração... A inspiração está de férias. 

CAMPANHA PELA LIBERDADE


Será preciso que se comece a saber: embora seja eu a escrever, o mesmo eu não sou. Se possível, perceba: dentro de cada um existem dois; e como dois, plural. E por essa indiscutível fatalidade, indago: não lhe assusta serdes mais de um? O confuso e o sereno, o vivo e o cadáver, o feio e o belo... todos estes sendo você? 
Não lhe assusta a fatalidade doentia que lhe põe a ser mal mesmo quando és bom? Quase me despedaço ao perceber que posso livrar apenas uma criança do sentimento inesgotável de fome e miséria, mas não todas. Essa omissão não lhe fere o caráter? Quem pode ser você quando um tiro leva a vida de alguém? Nas horas de horror, eu sou o revólver. 
Pois quem seria eu? As mãos que apertam o gatilho? Ou as que repousam dedos sobre o rosto já escasso de sangue? Minhas próprias mãos se omitem da escolha assim que percebem que viver é escolher. Elas escolhem o plural. Aquele estado de gosto que une o sim, o não e o porvir. 
Vais entender, espero, que não é você a desferir um golpe mortal na cabeça de alguém. Mas tenho que dizer, ainda que áspera, que quando a casa de alguém é invadida no Morro por um policial corrupto, você está em sua casa sendo... você. Embora você esteja em sua casa, quando um policial aponta a arma para a cabeça de alguém, também é tua a mão que atira. 
A mão também é tua por que você se ausenta. Enquanto o mundo de muitos se transforma em sangue, poeira e escuridão; suas mãos preparam o seu café. E se eu digo que tuas mãos são as mesmas a atirar, eu digo, em conjunto, com o meu segundo-eu, que a cabeça a explodir também é tua. 
E se todo mundo, além de um, são dois, eu não consigo entender a calmaria nos grandes centros enquanto o sangue do povo escorre cada ladeira dos Morros. Não entendo por que continuar assistindo à novelas das duas, seis, oito e o escambal de horas, se elas não dizem aquilo que precisa ser gritado. Não entendo por que assistir ao Jornal Nacional se ele não vai apontar o dedo para os policiais assassinos. Eles apontam o dedo para quem não tem por onde gritar. 
Então eu grito: Eu quero uma polícia que me defenda! Que defenda o povo! E não que o extermine! Eu quero uma política sincera que converse com as massas! Eu quero poder ir às ruas sem precisar sofrer com a imagem de pessoas deitadas em papelão! EU QUERO A LIBERDADE DE MEU POVO! É pedir muito? 
Quando eu entro no ônibus para ir para a UESC, eu vejo, pela janela, dezenas de pessoas deitadas nas ruas. Eu penso: Deus, por que eu estou indo a uma universidade e estas pessoas não? Eu penso, com todo o coração, o que me faz melhor. Não sou melhor. Eu tive sorte
Quando você se revolta com tudo aquilo que lhe faz menor, que lhe oprime; o mesmo Sistema excludente e opressor lhe chama de vândalo. Os jornalões lhe preparam uma sopa de mentiras e você a bebe calado. Onde mora a liberdade em um Sistema que lhe engana, estupra e mata sem que você perceba? 
Bruno Torres, Andresa e Nicolas foram presos por protestarem contra isso tudo. E por terem ido contra todos os interesses dos grandes barões - dos grandes e miseráveis barões, continuam presos nas amarras da injustiça. Até onde seremos censurados por nadar contra a maré? Eu tenho medo do silêncio daqueles que sabem de tudo isso e se mantêm calados. Eu tenho medo que tudo isso continue massacrando aqueles que possuem ideias. E, sobretudo, eu tenho medo que a injustiça continue a criar suas filhas para que nos prendam quando estivermos tentando mudar o mundo para todos nós.

CLARISSA DAMASCENO MELO

PARA AJUDAR:



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Fim.

Como em coisa transformada,
lançou-se sobre as águas;
minutos depois,
nem coisa, nem ele:
a morte.

Clarissa D Melo

Definição.



*
- Amor é quando você está disposto a morrer por alguém?
- Não. Amor é quando você está disposto a viver por alguém.

Clarissa D Melo


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Casa-Grande (Capítulo II)

A Casa Grande era uma propriedade extensa. O chão, forrado de madeira, possuía som próprio, e era som de unha que arranha; som fino, para temperar de terror as cabeças dos que se faziam pisar e repisar. Mainha chegou a ver, perdidas entre as muitas paredes, algumas sombras que ela jamais soube explicar de onde vieram. Talvez fossem outros narradores a espiar a estória passando, ou fossem os próprios personagens dessa estória se valendo do futuro para voltar ao passado e reviver tais anos de desilusão.
Dona Sinhá era linda como o amanhecer. Casara jovem e sem amor. O amor foi se edificando, com o passar dos anos, entre as paredes e as sombras. Embora fosse amor fabricado, inda era amor e amor dos fortes - ainda que a fortaleza seja relativa, e o relativo uma certeza. Já o Sinhô, homem forte cuja bravura verás em braço, era de um silêncio que feria. No entanto, era dono de olhos que diziam aquilo que ele nunca precisou dizer. Seu cansaço por estar onde e como estava era estampado no escorrimento que saía de seus olhos azuis. Amara a mulher, mas era amor menor, de contrato e conveniência. Desse amor se valeu a vida, obscura de silêncios que tu não ouvirá.
Quando compraram Mainha, negra forte e áspera, compraram, também, uma negra menor. Mainha tinha braços largos e era vinte e poucos anos mais velha que a outra; era ser pensante, embora se fizesse objeto por obrigação e ódio próprio. Inda lembrava-se de sua finada mãe, igualmente forte, tirada de um arredor africano que ela mesma não sabia onde ficava. Sem saber de histórias e suas origens, cresceu amarrada nos bordados da saia dela, que morreu de chicote forte no lombo.
A negra menor conhecera Mainha depois que chegara à antiga casa que serviam.  Sendo mais nova, não conhecera sua mãe, nem por onde andava. Só sabia que andara de casa em casa, servindo de si mesma para crescer e aprender o mundo do jeito que lhe era menos doloroso. Cresceu vendo o sangue de sua gente escorrer ladeiras. Era sua história sendo extinta sem se entender em seus olhos, que choravam de desaprovação a cada gota vermelha que caía nos pés daqueles que também a eram.
Fez promessa forte pros caboclos mortos. Jurou fidelidade a si mesma: seria, um dia, sinhá para bater em moça branca. Todo seu ódio e fúria traduzir-se-iam em pancadas de veneno agreste. Um dia amarraria, ao tronco, mãos delicadas de moças claras e, a gritarem, morreriam de dor. Sentiriam, tais quais negras, a dor de unhas invadirem as carnes. Tais quais negras, gritariam. Tais quais negras, morreriam. 
Foram, ela e Mainha, escolhidas pelo Sinhô para trabalhos dentro da Casa Grande. Logo, reunidas em amizade que nasce de precisão, uma gostou da outra e, a outra, fez da uma objeto de conversas infindáveis. Atravessavam noite, no porão, a conversarem como deveria ser o lugar que era naturalmente seu e, se em algum dia, perder-se-iam em liberdade doce. Depois, com o clarear do dia, colocavam-se a fazer as tarefas de escravas.
Dona Sinhá pouco entrava na cozinha. Somente para fazer as ordens e as humilhações, entrava de quando em vez; pisava por uns cantos, derrubava umas louças finas, ou por sem querer, ou por descaração própria, para que as negras viessem limpar tudo outra vez. Era mulher magra, mas seu rosto, sempre levantado, fazia dela bicho que não se encosta. Reclamava da louça, da mesa, dos serviços. Era, por se dizer, escrava de si mesma que, entediada, ia se divertir com a criadagem.
- Diga-me, querido – Disse ela encostada à cabeceira da cama, certo dia, enquanto via seu marido se arrumar para deitar ao seu lado – Sente saudades dos tempos antigos?
Interrogativo, Sinhô olhou-a emburrado, como sempre fora, e, a olhar-lhe nos olhos, respondeu:
- Que pergunta inútil é essa?
- Só pergunto por querer saber.
- Não pergunte. Vá dormir, que eu também tenho que fazer.
- Fazer por quê?
Perdendo a paciência, jogou-se no travesseiro e deitou-se do lado oposto, para não encarar a mulher. E disse:

- Vosmicê, por favor, esqueça que aqui estou. Se quiseres prosear inutilidade, ou pegue espelho e se veja nele ou faz favor de amanhã descer a Rampa para procurar amiga besta. Eu não sou amiga besta.  – E caiu em sono profundo que só acabou no dia seguinte.

Clarissa Damasceno Melo

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Parte um da parte única.

Ela disse:
- Você tem essa mania besta de não me responder!
Calmo, respondeu:
- E você, essa mania besta de querer palavras. Não as queira quando tudo o que eu puder ter for um olhar.
- Mas seus olhos são frios.
- Eu sei.
- E então?
- Ainda que frios, eles apontam para você. Não estás satisfeita?

Silêncio.

Ele disse:
- Já reparou como um único ponto de luz, ainda que fraco, ilumina parte de um quarto escuro?
- Não entendi.
- Ainda que meus olhos sejam frios, você gosta deles?
- Sim.
- Então estás iluminada.

Silêncio.

Ela disse:
- Vamos dormir.
- Faça silêncio. A luz do dia não pode se assustar.
- Dormir com você é sentir medo de retaliações?
- Dormir comigo é dormir só.

Ele disse:
- Essa fábrica... sua sirene me fere.
- A sirene é alta?
- Ainda que seu ruído fosse baixo, incomodaria.

Ela disse:
- Vamos viajar.
- Para onde?
- Por aí...

Ele disse:
- Preciso beber café.
- Eu também.
- Não quero ir fazer.
- Por que?
- Não tenho pressa.

Ela disse:
- Admiro você.
- Não faça isso.
- Por que?
- Biografias. Ou apelam ou desapontam.
- Mas não quero saber sua biografia. Quero saber quem é você agora.

Ele disse:
- Suicídio é covardia.
- Não, é coragem.
- É triste o desespero. Não suportar a tristeza não é coragem, é covardia.

Ela disse:
- Por que falamos de suicídio?
- Anorexia existencial.

Silêncio.

Ele disse:
- A existência é uma garota doente.
- Não entendi.
- Não precisaria.

Ela disse:
- Conversar é estranho.
- Não entendi.
- Não precisaria....

Clarissa Damasceno Melo