Talvez os dias tenham sido
feitos para chegar e ir embora. Talvez tenham sido feitos para que nem cheguem,
ou para que só cheguem e nada mais. Talvez os dias tenham sido feitos para
trazer alguma coisa ou tirar. Talvez os dias cheguem para nos lembrar de algo
importante, ou dizer, simplesmente, em seu silêncio, que importância não
existe. Aprenda, meu bom, que os dias nem completam nossa existência, nem nos
fere. Às vezes, os dias se limitam a serem dias e só.
Maria era aquela mulher
comum. Não possuía nada que lhe preenchesse as veias e o sangue. Era só ela e
era apenas o que poderia ser. Seus filhos não eram seus e estavam distantes.
Não se olhavam nos olhos e nem se sabiam olhar. Os vidros dos quartos dividiam
a alma de Maria. Seu marido se fora. Seus sonhos morreram. Seus dias, escassos
de luz, eram dias e nada mais. Em seu trabalho, Maria tomava café em copos
plásticos. Encostava a boca em plástico duro e mal sabia que aquele plástico
também a era. Obtusa em existência, oca de alma, perdida dos sonhos, a menina
Maria morrera para que a mulher se pusesse viva. A morte de uma criança é a
morte mais triste que tem.
Maria saiu do trabalho em um
sábado à tarde. O dia estava quente e as pessoas corriam. Sabe, leitor? Corrida
besta. Corre-corre de rua. Coisa de gente cujo destino é limitado. Maria corria
em seu destino limitado. Atravessava as ruas, ultrapassava o sinal, mergulhava
em uma pressa insana e inconsciente. Corria para todos os lados, mas mal sabia
para onde iria. Chegar em casa? Isso é bobagem. Ninguém chega em casa. Enquanto
a alma não pausar em descanso tranquilo, e enquanto o descanso não for de
prazer, ninguém chegou em casa. Maria não tinha casa. Ela só tinha uma porta,
seus filhos, um quarto e só. Maria não tinha casa.
Em toda a sua vida,
obedeceu. Seus pais disseram: fará faculdade de administração. Maria fez. Fez,
formou-se, trabalhou. Maria não olhava para trás e é por isso que Maria é
especial. Repito seu nome de propósito. É gostoso dizer Maria. Maria. Ma. Ria.
Mar. Ia. Maria. É quase uma música. É gostoso falar Maria. Mar nosso de cada
dia, traga o peixe, traga a festa, traga Maria. Maria não tragou. Maria
perdeu-se no vento de sua própria vida e fez-se de um jeito errado
indescritível. Defenda-a da próxima vez em que eu chama-la de obtusa. Maria não
era obtusa. Maria era Maria. Sua consciência doente não lhe permitira ser outra
coisa além de. Maria só poderia ser Maria, ora.
Mas Maria, naquele dia,
acordou diferente. Havia uma felicidade escondida nos olhos, cujas pálpebras,
doentes, pendiam inertes. Havia ali dentro de suas duas pedras negras, uma
sombra de felicidade plena. Arrumou-se em sua rapidez definitiva e partiu.
Calçada em sapatos apertados por conveniência, caminhou pelo chão de taco do
escritório. Bebeu café em copo plástico. Inteirou-se da vida metalizada a que
nascera predestinada ser.
Foi inteiramente Maria o dia
inteiro. Mas, atrás de seus olhos, escondida em sombras, a felicidade de Maria
explodia. Havia ali uma chuva de fogos de artifício que estouravam em um céu
aberto. Não vos digo, leitor, ser essa explosão algum tipo escondido de
epifania. Talvez fosse o tempo chamando Maria de volta. Ou fosse Maria alguém
que sempre escondeu essa felicidade atrás dos olhos. Os olhos negros, mortos,
inanimados de Maria.
A explosão surgia atrás dos
olhos, descia-lhe a face internamente, atravessava a garganta e morria ali,
antes de ser gritada. Maria não gostava de gritar. Sentiu o vazio que sentia
sempre toda vez que abandonava o escritório. O vazio mecânico já era dela por
que ela era parte adjacente de seu escritório. Quando este fechava as portas,
Maria se fechava junto. Ia pra casa pensando sempre no dia seguinte, na hora
exata de fazer voltar seu coração bater.
A urgência de Maria, no
entanto, era outra. Estranhamente, ela sentiu a necessidade incômoda e mortal
de abraçar seus filhos. Quis ir ver a exposição de artes plásticas. Quis tomar
sorvete de tamarindo com calda de limão. Quis atravessar a rua de braços
abertos, tomar banho de chuva, escorregar no chão molhado. Quis, Maria, olhar
as estrelas quando a noite caísse e ninar seus filhos para que estes pudessem
dormir. Maria havia acordado estranha. Os olhos negros eram os mesmos, mas
aquela não era Maria.
Mar, doce mar, traga peixe,
traga sal, traga amor, traga Maria. Maria não tragou. Fechou o escritório. O
coração em chama acesa, quase imperceptível aos olhos dos humanos-maria que
passavam pela calçada. Guardou as chaves na bolsa e apressou o passo. Hoje
faria lasanha. Esqueceria a dieta fascista que adotou para ela e para os
filhos. Maria queria esquecer a existência de seu antigo marido. Juntou toda a
pieguice no peito e caminhou, caminhou, correu. Meteu-se a atravessar a rua.
- MARIA! – Gritou alguém.
- MARIA! – Tornou a gritar.
Maria não olhou para trás.
Maria não poderia olhar para trás. Ela nunca olha. A vida segue em linha reta e
olhar para trás Maria não sabia. Maria não olhou. Alguém gritou Maria, mas
Maria não olhou a voz que lhe queria avisar que um carro corria.
O carro cortou a vida de
Maria.
CLARISSA DAMASCENO MELO