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sexta-feira, 31 de maio de 2013

MARIA NÃO OLHA IV


Talvez os dias tenham sido feitos para chegar e ir embora. Talvez tenham sido feitos para que nem cheguem, ou para que só cheguem e nada mais. Talvez os dias tenham sido feitos para trazer alguma coisa ou tirar. Talvez os dias cheguem para nos lembrar de algo importante, ou dizer, simplesmente, em seu silêncio, que importância não existe. Aprenda, meu bom, que os dias nem completam nossa existência, nem nos fere. Às vezes, os dias se limitam a serem dias e só.
Maria era aquela mulher comum. Não possuía nada que lhe preenchesse as veias e o sangue. Era só ela e era apenas o que poderia ser. Seus filhos não eram seus e estavam distantes. Não se olhavam nos olhos e nem se sabiam olhar. Os vidros dos quartos dividiam a alma de Maria. Seu marido se fora. Seus sonhos morreram. Seus dias, escassos de luz, eram dias e nada mais. Em seu trabalho, Maria tomava café em copos plásticos. Encostava a boca em plástico duro e mal sabia que aquele plástico também a era. Obtusa em existência, oca de alma, perdida dos sonhos, a menina Maria morrera para que a mulher se pusesse viva. A morte de uma criança é a morte mais triste que tem.
Maria saiu do trabalho em um sábado à tarde. O dia estava quente e as pessoas corriam. Sabe, leitor? Corrida besta. Corre-corre de rua. Coisa de gente cujo destino é limitado. Maria corria em seu destino limitado. Atravessava as ruas, ultrapassava o sinal, mergulhava em uma pressa insana e inconsciente. Corria para todos os lados, mas mal sabia para onde iria. Chegar em casa? Isso é bobagem. Ninguém chega em casa. Enquanto a alma não pausar em descanso tranquilo, e enquanto o descanso não for de prazer, ninguém chegou em casa. Maria não tinha casa. Ela só tinha uma porta, seus filhos, um quarto e só. Maria não tinha casa.
Em toda a sua vida, obedeceu. Seus pais disseram: fará faculdade de administração. Maria fez. Fez, formou-se, trabalhou. Maria não olhava para trás e é por isso que Maria é especial. Repito seu nome de propósito. É gostoso dizer Maria. Maria. Ma. Ria. Mar. Ia. Maria. É quase uma música. É gostoso falar Maria. Mar nosso de cada dia, traga o peixe, traga a festa, traga Maria. Maria não tragou. Maria perdeu-se no vento de sua própria vida e fez-se de um jeito errado indescritível. Defenda-a da próxima vez em que eu chama-la de obtusa. Maria não era obtusa. Maria era Maria. Sua consciência doente não lhe permitira ser outra coisa além de. Maria só poderia ser Maria, ora.
Mas Maria, naquele dia, acordou diferente. Havia uma felicidade escondida nos olhos, cujas pálpebras, doentes, pendiam inertes. Havia ali dentro de suas duas pedras negras, uma sombra de felicidade plena. Arrumou-se em sua rapidez definitiva e partiu. Calçada em sapatos apertados por conveniência, caminhou pelo chão de taco do escritório. Bebeu café em copo plástico. Inteirou-se da vida metalizada a que nascera predestinada ser.
Foi inteiramente Maria o dia inteiro. Mas, atrás de seus olhos, escondida em sombras, a felicidade de Maria explodia. Havia ali uma chuva de fogos de artifício que estouravam em um céu aberto. Não vos digo, leitor, ser essa explosão algum tipo escondido de epifania. Talvez fosse o tempo chamando Maria de volta. Ou fosse Maria alguém que sempre escondeu essa felicidade atrás dos olhos. Os olhos negros, mortos, inanimados de Maria.
A explosão surgia atrás dos olhos, descia-lhe a face internamente, atravessava a garganta e morria ali, antes de ser gritada. Maria não gostava de gritar. Sentiu o vazio que sentia sempre toda vez que abandonava o escritório. O vazio mecânico já era dela por que ela era parte adjacente de seu escritório. Quando este fechava as portas, Maria se fechava junto. Ia pra casa pensando sempre no dia seguinte, na hora exata de fazer voltar seu coração bater.
A urgência de Maria, no entanto, era outra. Estranhamente, ela sentiu a necessidade incômoda e mortal de abraçar seus filhos. Quis ir ver a exposição de artes plásticas. Quis tomar sorvete de tamarindo com calda de limão. Quis atravessar a rua de braços abertos, tomar banho de chuva, escorregar no chão molhado. Quis, Maria, olhar as estrelas quando a noite caísse e ninar seus filhos para que estes pudessem dormir. Maria havia acordado estranha. Os olhos negros eram os mesmos, mas aquela não era Maria.
Mar, doce mar, traga peixe, traga sal, traga amor, traga Maria. Maria não tragou. Fechou o escritório. O coração em chama acesa, quase imperceptível aos olhos dos humanos-maria que passavam pela calçada. Guardou as chaves na bolsa e apressou o passo. Hoje faria lasanha. Esqueceria a dieta fascista que adotou para ela e para os filhos. Maria queria esquecer a existência de seu antigo marido. Juntou toda a pieguice no peito e caminhou, caminhou, correu. Meteu-se a atravessar a rua.
- MARIA! – Gritou alguém.
- MARIA! – Tornou a gritar.
Maria não olhou para trás. Maria não poderia olhar para trás. Ela nunca olha. A vida segue em linha reta e olhar para trás Maria não sabia. Maria não olhou. Alguém gritou Maria, mas Maria não olhou a voz que lhe queria avisar que um carro corria.
O carro cortou a vida de Maria.


CLARISSA DAMASCENO MELO

domingo, 26 de maio de 2013

Verônica.

A Lua anda pelo Céu,
Por cima da casa,
Atenta.

Ela canta:
Canção de ninar.

A assobio é sentido pela cidade
Enquanto os pássaros, coloridos
Batem asas sobre o quarto.

"Toda vez que uma criança
Diz não acreditar em fadas,
Uma fada cai morta em algum lugar."

Mas toda vez
Que a menina de laço vermelho
Abre os lábios para sorrir,
Uma legião delas se levanta.

Não tema a escuridão da noite,
Ela tem a cor dos teus cabelos.

A noite flui silenciosa,
E quando amanhece
É poesia.

Não tenho dúvidas:
Quando o céu está azul,
É Verônica que está sorrindo.

À ti, Verônica Mírian

CLARISSA DAMASCENO MELO


sábado, 25 de maio de 2013

Tenho Medo II

Não tenho medo
Que um dilúvio
Parta a minha rua em dois pedaços.

Tenho medo de atravessá-la,
Crua...
E não me parar em teus braços.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Tenho Medo I

Eu tenho medo.
Não que o mundo não mude.
Não de um tiro na garganta.
Não de uma rua deserta.

Tenho medo de que meus braços
Não possam crescer
Além. 

Que eles se atrofiem
E se percam
No não-caminho ao fim.

Eu tenho medo.
Não das madrugadas.
Não dos caminhos escuros.
Não das gritarias.

Tenho medo de que meus pés
Sejam obedientes ao destino.

Tenho medo.
Não das sentenças, 
Das desconfianças
Das limitações...

Meu medo é tão interno, 
Tão opaco e profundo...
Que é medo de ser 
O que já me tornei. 

CLARISSA DAMASCENO MELO.