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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Recheio de Vazio

Chove chuva de vento
nas pessoas,
por dentro.

Chove ar de fartura
de vazio, nas pessoas,
por dentro.

E chove chuva salgada
dos olhos das pessoas
para dentro.

Estou farta de fartura
do vazio das pessoas
por dentro.

CLARISSA DAMASCENO MELO

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Dor de poeta.

Ironitizar a voz que sai roca
Os dedos que doem
e a ideia que some.

Evangelizar a dor de garganta
a dor no corpo
e a dor de alma.

Dizer que sente dor
que sente febre
mas que não sabe o que tem.

É dor de poeta.
Que só sabe sentir,
mas não sabe o que é.

CLARISSA DAMASCENO MELO

(À pedido de João Paulo Hoffmann)

domingo, 26 de agosto de 2012

Justificando o injustificável

Não é texto.
Não é conto.
Não é literatura.

Vou
Me
Jus
Ti
Fi
Car.
Perguntaram-me: Por que Via Crucis?
De súbito e sem pensar, eu disse:
Via Crucis é o caminho que se caminha com uma cruz nas costas. Quando escrevo, tenho a cruz, tenho os pregos e os juízes. E o final do caminho é a crucificação. Então, me crucifico.


CLARISSA DAMASCENO MELO

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Reza.

Fazia dias que se arrepiava sem querer. E era uma coisa doida, como se a vida estivesse, a todo o tempo, te avisando de alguma coisa ou alguém que se aproximava. E, quando dormia, sentia o pescoço enrijecer-se e contrair-se de forma dolorida. Os olhos, miúdos e assustados, apertavam-se quando proferia a prece: valha-me Deus!  E passava a noite acordada, sonhando suas pequenas orações sobre o futuro. Gostava de pensar... E só pensar dava à ela a ilusão de ser uma no mundo.
Até que, em teus sonhos, enquanto os sonhava de olhos fechados, via-se afogada em marés abertas, ou nadando contra as muitas violentas ondas que lhe entravam garganta à dentro. E acordava sobressaltada, com o coração posto na boca, impiedosamente rápido. E gritava. Durante as noites enegrecidas em teu quarto, passou a ouvir vozes. Tapava os ouvidos com os travesseiros, enquanto as pernas golpeavam o ar. Inútil. Vozes não vão embora.
"Isso só pode ser doidice de tua cabeça cheia de vento, moleca!" Disse-lhe a tia, impaciente.
"É stress... há de sumir logo, logo..." Dizia-lhe a vizinha que ouvia teus gritos à noite.
"É o diabo que atormenta gente herege" Disse-lhe a mulher crente de saião nos pés "Ou tu se arrependes dos teus pecados, ou ele vai continuar gritando com você todas as noites..."
Mas ninguém dizia-lhe o que ela queria ouvir, talvez seja porque nem mesmo ela sabia o que queria ouvir. E, enquanto diziam-na o que fazer, não fazia nada. Passava o dia com os pensamentos na noite; e à noite, pensava no dia e desejava que este nascesse logo. Era uma vida miserável, de medo, de pavor.
Chegou a deixar as luzes acesas, na tentativa vã de espantar qualquer criatura maligna. Comprou incensos de todas as ervas que conhecia e, enquanto a fumaça se espalhava pelo quarto, sua garganta enchia-se de pó, então passou a ter problemas nos pulmões.
"Vá em uma rezadeira... Em uma que seja forte e que não te cobre nada. Rezadeiras que cobram são picaretas." Disse-lhe uma amiga "Eu já passei por coisa parecida, e Dona Eulásia foi quem me tirou da dor."
Anotou o endereço de Dona Eulásia no fundo da agenda, e, em meio ao suor da testa e ao batuque do coração, decidiu que tentaria mais uma vez.  E foi tentar. Chamou o pai. Não poderia seguir rumo à tua cura sozinha. E esperava que realmente fosse tua cura.
Montaram, os dois, na moto e seguiram viagem. Enquanto a máquina corria, orava baixinho suas preces decoradas na catequese. Finalmente serviram para alguma coisa! Até que seu pai freou na frente de um casebre amarelo, parecia ter sido pintado com tinta guache. Desceram da moto, o chão de lama formava um caminho curto entre eles e a velha rezadeira. Ela entrou olhando os pequenos pés de ervas - as ervas dos incensos de seus pulmões. E disse: valha-me Deus Pai de Todo o Poder!
"Entre filha" - Disse a velha, sentada em uma cadeira de plástico. Os olhos, inchados de tempo, lacrimejava um líquido esbranquiçado, e eram claros feito o mar. O mar que afogava gente. A pele enrugada era incrivelmente brilhante. Fosse suor, fosse natureza, era bonita de se ver.
Ela sentou n'outra cadeira de plástico e observou a velha indicar a porta da casa para que seu pai saísse. Ele obedeceu.
"Feche os olhos" Ordenou a velha, com um ramo de folhas nas mãos. "Feche os olhos por que a oração só pode entrar pelos ouvidos. Deixe aberto o coração."
Então, fechou os olhos.
E, por um momento, teve paz.
Sentiu as folhas molhadas tocar-lhe o rosto e os braços, enquanto a velha proferia oração à São Jorge. E achou aquilo a coisa mais linda do mundo. Ouvia a tudo enquanto sentia os arrepios costumeiros invadir-lhe o corpo. Estava renascendo. A reza era livre, e ela podia ouvir. Sentiu nos braços um pouco do peso do mundo. Abriu os olhos para percorrer a casa. Era pobre, pobre demais. Quadros na parede com imagens de santos estavam sem cor, de tempo. Uma mesa de madeira com uma toalha de tricô. E só. Paredes nuas.
"Feche os olhos" Ordenou-lhe a velha. " Vamos filha, ajude."
Fechou os olhos e esqueceu do mundo.
Viajou.
"Tá com Ar de Morto."
"Hm?"
"Ar de Morto. Vai precisar de uns banhos, e de mais reza."
Ar de... que? "Crendeuspai"; pensou, e, no auge de sua estranheza, interrompeu as orações e levantou-se.
"Muito obrigada..."
Atravessou a porta e foi embora. Ficou em silêncio enquanto subia na moto.
"Como foi?" Perguntou-lhe o pai.
"Bobagem pura." Respondeu.
Voltou pra casa para esperar a noite, o medo e o pavor.


CLARISSA DAMASCENO MELO

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Hiatos


É que quando se escreve muito, ri-ti-ma-da-men-te, os dedos começam a se cruzar. E surgem os pontos finais, as vírgulas excessivas, os verbos intransitivos e as desavenças do ser. Quando se escreve muito, esmiuçando a si próprio, escorre-se a gota açucarada. É a vida se espremendo, parindo.
A parapsicologia não chega ao cheiro do pé das letras. Pobres psicólogos que nos tentam entender! Não há entendimento, e entender isso já é desentender-se consigo mesmo. Eu gosto do dito pelo não dito. Vê? As coisas que te são diretas, chegam até você e voltam em ato de reflexão. Gosto das coisas que refratam, que aderem, grudam no interior de sua carne e continuam seu trajeto como se não houvesse coisa alguma. Esse é o objetivo da vida: atravessar pessoas.
E que cantem os verbos indecisos, as grandíssimas locuções, as aparições. Pois sem esse cantar, o universo explodiria em minúsculos pedaços. Partículas perdidas no próprio universo, que está dentro de outro, esperando explodir.  Que está dentro de um outro, e de outro, e de outro... Feito caixas que não param de abrir-se e explodir-se.  
E os momentos hiatos existem para provar que somos feitos de pó e que não sabemos pensar. Depois que o verbo se espreme, o fluxo sanguíneo dos dedos diminui, estes endurecem, e ficamos sem escrever coisa alguma.
Esse é o objetivo da vida: fazer, fazer, fazer... e depois parar.
CLARISSA DAMASCENO MELO

Borrar batom.


O tocador de piano ficará no canto da sala, com olhos entreabertos, para ver somente metade da história passar. E, enquanto os seus dedos enrugados perpassarem por todos os cantos do piano, cuspindo as notas musicais; os personagens, em cena, não notarão presença, nem de pianista, nem de música.
E enquanto a menina passar batom, e o rapaz, ensaiar suas falas românticas; a música será singela e doce, com certo ar de misticismo e emoção. Vai se tratar de um momento prévio, em que cujos corações se conhecem, mas jamais se tocaram. A música lenta serve para enlaçar aquele momento em que não se sabe amar, amando. O saber, amor, de amor, sem sentir.
E, enquanto a menina ouvir as palavras decoradas, e sorri timidamente para o rapaz corado, a música vai batucar. Batucará dentro e fora de ambos os corpos, que estremecerão de emoção aguda, enquanto os corações, gentis e inocentes, morrerão de pouco a pouco, de bater por contra o peito na vontade de se corar por fora também.
E, enquanto o rapaz, rubro de vergonha de si, beijar a mão suave da menina de bico vermelho, os seus olhos se fecharão diante do amor, que, tamanha é sua grandiosidade, que já não caberá em palavras decoradas, nem nos corações de ambos. E, quando sentir a saliva adocicada descer-lhe a mão veluda, a menina sorrirá e dirá: também te amo. E amo demais.
Mas o pianista, tanto quanto o amor, é confuso e sóbrio. E, quando vir tamanho sentimento diante de si, tratará de fazer seus dedos enrugados agirem mais rápido. E a música passará de suave e doce, para um som amargo, de dor e fúria, feito um animal ferido. Grunhindo, entre as teclas do piano, o som será amargo e infeliz. E, as mãos veludas da menina se enrugarão também. Será a própria mão do pianista.
O rapaz esquecerá as palavras decoradas, e não mais as dirá. E se revoltará ao tomar a mão da amada, que, de tão enrugada, passará a incomodar seus lábios que, embora não saibam mais as palavras bonitas, sabem ainda o que é belo, e a desejar o belo. Franzindo sua testa, se afastará em breve. E, enquanto a música tocar suas últimas passadas de ódio, suas passadas encontrarão a porta de saída.
A menina, emudecida, ficará na sala, na companhia da música agridoce. E chorará por nem ter borrado o batom.

CLARISSA DAMASCENO MELO