A Casa Grande era
uma propriedade extensa. O chão, forrado de madeira, possuía som próprio, e era
som de unha que arranha; som fino, para temperar de terror as cabeças dos que
se faziam pisar e repisar. Mainha chegou a ver, perdidas entre as muitas
paredes, algumas sombras que ela jamais soube explicar de onde vieram. Talvez
fossem outros narradores a espiar a estória passando, ou fossem os próprios
personagens dessa estória se valendo do futuro para voltar ao passado e reviver tais anos de desilusão.
Dona Sinhá era
linda como o amanhecer. Casara jovem e sem amor. O amor foi se edificando, com
o passar dos anos, entre as paredes e as sombras. Embora fosse amor fabricado,
inda era amor e amor dos fortes - ainda que a fortaleza seja relativa, e o relativo uma certeza. Já o Sinhô, homem
forte cuja bravura verás em braço, era de um silêncio que feria. No entanto,
era dono de olhos que diziam aquilo que ele nunca precisou dizer. Seu cansaço
por estar onde e como estava era estampado no escorrimento que saía de seus
olhos azuis. Amara a mulher, mas era amor menor, de contrato e conveniência.
Desse amor se valeu a vida, obscura de silêncios que tu não ouvirá.
Quando compraram
Mainha, negra forte e áspera, compraram, também, uma negra menor. Mainha tinha
braços largos e era vinte e poucos anos mais velha que a outra; era ser
pensante, embora se fizesse objeto por obrigação e ódio próprio. Inda
lembrava-se de sua finada mãe, igualmente forte, tirada de um arredor africano
que ela mesma não sabia onde ficava. Sem saber de histórias e suas origens,
cresceu amarrada nos bordados da saia dela, que morreu de chicote forte no
lombo.
A negra menor
conhecera Mainha depois que chegara à antiga casa que serviam. Sendo mais nova, não conhecera sua mãe, nem
por onde andava. Só sabia que andara de casa em casa, servindo de si mesma para
crescer e aprender o mundo do jeito que lhe era menos doloroso. Cresceu vendo o sangue de sua gente escorrer ladeiras. Era sua história sendo extinta sem se entender em
seus olhos, que choravam de desaprovação a cada gota vermelha que caía nos pés
daqueles que também a eram.
Fez promessa forte
pros caboclos mortos. Jurou fidelidade a si mesma: seria, um dia, sinhá para
bater em moça branca. Todo seu ódio e fúria traduzir-se-iam em pancadas de
veneno agreste. Um dia amarraria, ao tronco, mãos delicadas de moças claras e,
a gritarem, morreriam de dor. Sentiriam, tais quais negras, a dor de unhas invadirem as carnes. Tais quais negras, gritariam. Tais quais negras, morreriam.
Foram, ela e
Mainha, escolhidas pelo Sinhô para trabalhos dentro da Casa Grande. Logo,
reunidas em amizade que nasce de precisão, uma gostou da outra e, a outra, fez
da uma objeto de conversas infindáveis. Atravessavam noite, no porão, a
conversarem como deveria ser o lugar que era naturalmente seu e, se em algum
dia, perder-se-iam em liberdade doce. Depois, com o clarear do dia,
colocavam-se a fazer as tarefas de escravas.
Dona Sinhá pouco
entrava na cozinha. Somente para fazer as ordens e as humilhações, entrava de
quando em vez; pisava por uns cantos, derrubava umas louças finas, ou por sem
querer, ou por descaração própria, para que as negras viessem limpar tudo outra
vez. Era mulher magra, mas seu rosto, sempre levantado, fazia dela
bicho que não se encosta. Reclamava da louça, da mesa, dos serviços. Era, por
se dizer, escrava de si mesma que, entediada, ia se divertir com a criadagem.
- Diga-me, querido
– Disse ela encostada à cabeceira da cama, certo dia, enquanto via seu marido
se arrumar para deitar ao seu lado – Sente saudades dos tempos antigos?
Interrogativo,
Sinhô olhou-a emburrado, como sempre fora, e, a olhar-lhe nos olhos, respondeu:
- Que pergunta
inútil é essa?
- Só pergunto por
querer saber.
- Não pergunte. Vá
dormir, que eu também tenho que fazer.
- Fazer por quê?
Perdendo a
paciência, jogou-se no travesseiro e deitou-se do lado oposto, para não encarar
a mulher. E disse:
- Vosmicê, por
favor, esqueça que aqui estou. Se quiseres prosear inutilidade, ou pegue
espelho e se veja nele ou faz favor de amanhã descer a Rampa para procurar
amiga besta. Eu não sou amiga besta. – E
caiu em sono profundo que só acabou no dia seguinte.
Clarissa Damasceno Melo
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