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quinta-feira, 25 de julho de 2013

Casa-Grande (Capítulo I )

Nota: Este conto se estenderá em vários blocos. Dedico-me a escrevê-lo há algum tempo e, pela primeira vez, sinto que é chegada a hora de divulgá-lo. De mim à mim, construo e desconstruo tudo aquilo que eu acredito ser o futuro, o passado e o presente. Não mais que isso.
À você, que me pretende ler, dedico tudo aquilo que isso aqui pretende se formar.
Um beijo,
Clarissa.

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Não quisera eu, me ser, que me foi imposta, em vontade, por entre rugas de mão de mulher, o que eu me seria em suposto. Pois que me edifico aqui, entre vossos olhos, sujeito a desabar por ser nada além de projeções de olhos alheios -, se não teus. Diz-se que o amor é bicho que brota em pé, pois vos digo em voz rouca, que aquilo que brota nos pés é plantado em semente e regado. E eu não creio em amores regados. Amor pra ser amor tem de surgir no mesmo instante em que se nasce. Se tu não nasces já a amar, meu bem, nunca amarás. 
Sugiro uma xícara de café, aceita? Pois olhe bem, as histórias frias e escassas de tudo necessitam de um leitor nutrido. Se tu nutres a ti mesmo, leitor, e se se importa com a quentura de vosso coração, peço para que considere uma xícara de café. Nasci dentro do mato, de parteira. Mainha, cujas pernas grossas de negra mulata, fez seu desencarne desejado depois de muito labutar por cima da terra. Em suma, já nasci matando a minha mãe. A parteira embalou-me nuns panos velhos e levou-me com ela para a casa dos brancos.
Também negra, entrou comigo nos braços pelas portas da cozinha, lugar em que passava a maior parte do dia a cortar temperos e carnes. A gente branca dessa casa falava dois idiomas: o português em que vos descrevo e um inglês miserável que me confundiu toda a infância. A parteira era um ser humano doce e acabou por me criar feito filho. Já que minha mãe jazia esquecida em terras que jamais conhecerei. A infância foi-me dolorosa. Descia com baldes vazios até a cisterna do lado de fora, que ficava a uns quatorze quilômetros da casa grande, e voltava com eles cheios, para o banho das filhas dos patrões. Duas meninas cujos lábios proferiam birra. Hoje, não mais que pó.
A isso, somava-se o dever de limpar a cozinha junto a mainha de criação, varrer o pátio, forrar as camas, tudo em troca para não ser jogado na senzala. Às vezes eu passava, a contragosto de mainha, de fronte a esse lugar. Ouvia, dela, que foi negra criada em senzala, que eu jamais deveria passar por perto. Mas eu passava. Confesse, leitor: tu já deves ter desobedecido ordens, por instinto vosso, para compensar repentinas solidões que aparecem de quando em vez. Repare o plural de solidão: ela nunca vem a sós.


Embora fizesse, durante o dia, atividades grosseiras, eu era uma criança de saúde frágil: andava pelos cantos sentindo falta de ar, a ter febre e pigarrear um catarro massudo que de minha garganta não saía. À noite, sentava-me no muro da varanda e ficava a ver o vento bufar nas folhas das árvores e na grama do chão. Era renascimento. Tu, leitor, já renascestes? Já, em algum momento de vossa pacata vida, sentiu a ti pairando por fora de vosso corpo a invadir o outro? 
Quando eu olhava o vento passar, eu saía de mim e me ia ser as folhas que recebiam esse vento. Digo-vos: a maciez do vento tem brilho rosa-vertigem, e me é encanto até os dias de hoje, que não mais existo. E se eu me deixava de ser para ser a grama verde que balançava no brilho rosa dos ventos, por favor, creia-me. A esses dias, adiciono o velho farfalhar de minha voz de gago, que hoje também jaz no profundo sono de meu corpo. Não, não estou morto –tenho de dizer -, mas estou passando dessa para uma melhor e preciso que conheças a minha história.
Não é lá grande coisa, mas é coisa de ser grande. Não tem poesia em minhas linhas, embora a lírica se faça forte. Devo dizer que tais linhas horizontais estão sendo escritas por dedos que sangraram e ainda sangram, feito os olhos dos mulatos que, nas costas, levavam a corda forte dos Reis sem reinados. Eu não fui de viver com os negros que saíam, de sol a sol, para os canaviais e voltavam suados de sal africano; por sorte ou não, acabei ganhando a admiração dos donos da casa que diziam sempre “Valha-me! Que menino esperto” e, a isso, acrescentava-se “Mas, também pudera, tem sangue escuro por dentro, e gente de sangue escuro nada mais é que moradia de esperteza vã.” Eu não sabia o que ‘vã’ me queria dizer, mas era uma palavra engraçada. À noite, na cozinha, deitado no chão, ficava a repeti-la e a gritá-la com a língua colada no céu da boca, a fazer caracóis. Só parava depois de sentir a saliva escorrendo os cantos da boca e mainha fazer cara de nojo e desatino por isso.
O meu dia amanhecia antes do Sol, que teimava aparecer somente duas horas depois. Antes disso, mainha ficava a contar-me como minha mãe verdadeira era e o que gostava de fazer. A véia me disse que se tratava de um bom coração, embora fosse cheio de desastres em seus caminhos. Vivera pouco, mas vivera em fundo tudo que lhe foi imposto. As duas saíram de algum lugar, inda da África, e viajaram rumo ao Brasil – aqui, onde estamos.
A verdade, leitor, é que minha história é uma Matrioshka, e terás de ter paciência de puxar-me de dentro de outras estórias, e outras, e outras, até chegares a mim, aqui, donde me estou, e, só então, olharás meus dedos que sangram e minha testa que inda goteja. Se estou a me escrever em papel e pena, é que necessito. Entenda: não existe pássaro mais bonito que o Condor. E é tudo o que um dia inda serei.
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Fechou os olhos, coçou os braços, lacrimejou suor. “Por hoje, chega.” Pensou. Dobrou o papel com as letras frescas, fez oração, e voltou para a cama, onde a escuridão lhe engoliria.


CLARISSA DAMASCENO MELO

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