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domingo, 22 de janeiro de 2012

A tumba


Nota Prévia: Escrevi esse texto depois de assistir a um vídeo no youtube em que FIAPINHO faz homenagem para a adolescente Jéssica, esfaqueada pela melhor amiga na porta da escola. Senti dor extrema e suguei seu sofrimento para fazer dele um conto meu.
***
Eles eram dois. E eram um. É, para mim, de tamanha estranheza falar sobre ambos. Pois não os conheço, apenas de ouvir. De sentir. E do fundo da minha alma puxei esta história, que é real. E vou contar com meu coração aos prantos. E, no final, levantarei para lavar o rosto duas ou três vezes. E desejarei ter paz de espírito. E desejarei ter tocado vocês.
E era noite. Daquelas que acontecem normalmente. Estava fria, mas não chovia. Aliás, não podia chover. E os dois se conheceram sem se olhar. Ele, sentado, ouvindo música, batendo papo com os amigos; ela, depois de sair do colégio, teclando do seu novo computador. E os dois passaram a conversar todos os dias, sem compartilhar abraço algum.
E abraço algum não era nada perto de tamanho afeto. Não sei se pode se falar de amor, mas eu falo agora de um sentimento ininterrupto e inigualável que ele passou a sentir por ela e ela sentiu por ele. E se os olhos não se encontravam, e a pele não se tocava, certeza tenho de que os corações de ambos estavam fundidos em um só. Gritando em uníssono o barulho que só os dois podiam ouvir – e em sincronia. Não sei se isso é amor, mas é algo muito forte.
E se passaram noites como aquela primeira. E as noites eram longas quando estavam a dormir. Pois queriam se ver. Mas não se viam. Falavam-se apenas. Estamos acostumados a ouvir histórias de amor profundo em que as barreiras postas eram brigas familiares, guerras entre nações, espiritualidade… Mas – é até engraçado, digo eu – que a barreira que separava ele dela era uma tela de computador e um pouco mais que quatrocentos quilômetros.
E isso era suficiente para mantê-los afastados. Mas, que ironia, suas almas dormiam juntas. E estudavam juntas, e de tão juntas eram uma só. Como seus corações.  E assim seguiram suas vidas. Ela queria vê-lo. E pediu incontáveis vezes para que ele fosse vê-la de perto. Ele queria vê-la também, claro que queria! Mas entre idas e vindas, pensamentos à parte, nessa de que o mundo não pode acabar, eles nunca deram um jeito de se ver, e não se viam.
Mas sentimento nenhum deixa de crescer. Nem o pior de todos pode se manter no mesmo tamanho por muito tempo. Até ódio cresce. E o amor cresceu. Contrariou as leis humanas que dizem que pra ter amor se precisa estar perto. Mas eis outra ironia da vida: eles estavam perto. Beijavam-se. Abraçavam-se. Só que ninguém nunca soube dizer isso para eles, e eles ficaram sem saber.
E um dia decidiram se encontrar. E teriam num céu estrelado uma explosão de fogos. E se tocariam, e se conheceriam – e ficariam juntos aos olhos que tremelicavam demais. 
E esse dia seria ontem. E se confundiria com o resto de suas vidas. E tamanha era a vontade de ambos que eles não esperariam para, em fim, olhar nos olhos. E esse dia estava mais perto do que longe. E esse dia chegou. Mas, antes de ir, ele – por certo – queria falar com ela. E ligou o aparelho que os ligou por muito tempo. E quando o ligou teve de súbito suor frio na testa, e no coração uma dor profunda. Dessas que estou sentindo agora.
E esta é a parte aguda da história. E na tela do computador, em tons pastéis, lia-se com extrema dificuldade: Ela fora morta ao sair da escola. Levou nas costas profundos golpes de faca. E não resistiu.
E ele chorou sem acreditar. E ela por certo chorou ainda mais. E ele correu e adiantou-se. Chegaria a tempo de vê-la. Mas é aí que eu queria chegar. O momento que deu-lhe vida foi aquele que tirou ela do mundo. Foi ao sair da escola que ela o conheceu. E quando o tocaria, foi ao sair da escola que ela morreu. Mas morreu a morte de todos nós. Em um único grito. Mas gritou alto.
E ele enfrentou os quatrocentos e mais um pouco quilômetros. E ele não viu mais barreira alguma: aquele era o momento de vê-la. Embora as palpitações o impedissem de… andar. E ele sempre quis vê-la. Mas o maldito ônibus demorava. E as malditas horas passavam depressa. E, no auge de sua (in)felicidade de vê-la, seguiu até o único cemitério que havia na cidade. E se não viu seus olhos, sentiria sua pele.
Mas não havia pele, não havia olhos, não havia vida alguma. Havia a frieza que se encontra nos cemitérios. Havia o nada. Havia o nome dela cravado no mármore branco que envelheceria os anos que foram roubados dela. E havia o choro, e toda a chuva que saía de dentro dele. E naquela incompreensão da vida ele soube que aquele era o momento que eles se conheceram de verdade. E o amor ficou na vontade mais uma vez.
CLARISSA DAMASCENO MELO
2011

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