Páginas

domingo, 22 de janeiro de 2012

A pena


Escrever o que escrevo agora é doloroso, é por isso que é difícil. Pois quando lembro dos momentos de ensinamentos que tive, uma dor de cabeça borbulhante me atinge. Mas preciso colocar isso para fora, senão explodo. E quando se dói, se precisa de música. A ouço agora, como um renascimento, enquanto que minha cabeça se esforça pra lembrar o que pretendo esquecer depois de colocar tudo para fora de mim. Prometa-me uma coisa: você deve aprender ao menos uma lição do que aprendi, em toda a sua vida, sem dor.
Eu tive uma amiga. Não dessas que aparece em um momento e vai embora. A tive a maior parte de minha vida. A amei. quando meninas, éramos juntas. Mas crescemos. Por algum tipo de ironia, crescemos. E a dor de cabeça miúda se interioriza em mim, aos poucos - sinto eu agora - essa dor cresce, assim como esta história que aconteceu de verdade. Mas, desde pequena, ela demonstrava ser, dentre todos os adjetivos atingíveis e grandiosos, fantasiosa. 
Ela fantasiava ser o que não era - talvez por isso acabou como está hoje - e, de pouco em pouco, desde menina pequena, conseguia o que era dos outros. Vos repito: ela sempre quis ter o que pertencia aos outros. E essa dor aguda me atinge agora o peito. Como um soco. Como ela encarnada.
E então crescemos. Eu, do meu jeito. Ela, do jeito mais torpe que se pode imaginar. Não éramos duas apenas, mas um pequeno conjunto de pessoas. No entanto, mesmo rodeada de gente, eu me sentia só. Tão só que, de todas as amizades antigas, digo que só duas ou três valeram à pena.
Ela, assim como hoje, mostrava-se efusiva. Corria por aí atrás de pessoas que pudessem oferecer o que ela queria. Mas eis um ponto que não entende: o que eu tinha para oferecer? Sempre fui isso aqui que se vê. Constante, sem nenhuma surpresa. Vazia, como uma bola de assoprar. Mas respeitem, cada um é como se permite ser. Mas, voltemos à minha dúvida, e a possível resposta: Eu tinha o que talvez ela mais queria, eu tinha amor cultivado no coração. 
E dirão vocês que ela, coitada, talvez não possuísse em casa a base para a construção do amor. Mas digo com tranquilidade - embora a língua se embole - que ela tinha uma mãe que a amava muito. Aguardem. Sua mãe era - talvez ainda seja - daquele tipo que sente dó de si mesma por estar no mundo. E eu sentia dó porque ela estava no mundo. Não por ela estar, mas por ela viver como vivia, e vive hoje.
Essa mãe não recebia metade do respeito que merecia. Minha suposta amiga a humilhava na frente de todos que tivessem olhos para ver. Ria dela, a magoava profundamente. Era como um ritual. Um dever - uma vingança. Mas daí, concordem, há um nó: quando isso acontecia eu me calava. Sei que qualquer pessoa com sanidade, poria um fim nisso tudo imediatamente, mas - pobre eu - quando me sinto ofendida, me enrolo feito uma lagarta que é tocada, como uma lesma que acabaram de jogar sal. Me sinto doída e quando sinto dor prefiro me calar, o que é um paradoxo.
Mas voltemos ao caso, essa minha suposta amiga, certa vez, se envolveu com outra pessoa pior que ela. A cena devastadora que vou vos descrever agora dói-me por dentro. Mais que ácido, é a representação fiel do que se entende de desprezo. Éramos jovens - 13, 14 anos - e essa pessoa, a mais torta que conheci no mundo - beirava os 21. Temo estar sendo explícita demais, mas, perdão, se eu não chegar no ponto máximo que pretendo, explodirei em mil pedaços aqui mesmo.
Lerão, talvez, personagens dessa história. Mas não me culpo. Dor maior me provocaram eles. E se sentirem incômodo, ou dor profunda no estômago, cheguei onde queria chegar. Por que vingança maior não havia. Essa dor no estômago é minha voz gritando, sendo digerida. São minhas unhas cravadas na carne. Sou eu dentro de vós, sugando, sugando.
Todos os dias, depois das aulas, ela se escondia aqui em casa, mesmo sem meu consentimento. Não demorava muito, e, de carro, um UNO, lembro bem, meio verde, meio morto, o ser amor - se é que se pode chamar de amor algo tão sujo - vinha buscá-la. Foi assim quase que todo o ano. Quanto a isso, nada vinha a mim. A dor começa quando descubro que ela me rouba - não só sossego - mas coisas minhas, de valor. Isso me fez doer. é desse tipo de dor que falo, desse fardo.
Nos primeiros dias, coisas sem importância. Mas existe aí a minha primeira lição: corte o que for ruim primeiro. Mas não cortei. Deixei as raízes fincarem no chão. Deixei crescer na terra úmida o desespero inócuo e sofri quando, nos terceiros dias, desapareceram coisas de maior valor. Mas não se trata apenas de uma ladrazinha, essa minha amiga, se trata de um ser disforme por dentro. Cheia de si. Quando o “eu” que existe dentro dela é nulo, porque, para o mundo, ela nada tem para oferecer.
Agora vou explicar minha segunda lição: não se incomode com o inferno de ninguém. A pessoa que a envolvia - de índole pior que a dela - possuía passado e presente que provocaram-me arrepios. Alertei-a sobre tudo, obviamente, mesmo ladra, ainda a tinha como amiga - por pura pena, talvez, ou por puro medo. Medo ainda não sei porque, mas no fundo de minha alma, eu sentia a necessidade de salvá-la. Mas quando a paixão é forte e a cegueira insana, tem-se nos ouvidos algodões. 
E os tristes dias se repetiam: Ela, gastando a vida. Sua mãe, gastando a vida com ela. A cada dia que passava, mãe e filha estavam esgotadas. E ainda sinto o cheiro da carne. Ainda ouço o choro do meu coração, que chove agora como no passado. E ela contou para ele o que eu havia dito. E ele - graças a Deus - tirou ela de minha vida. Mas brigamos para isso. (in)constantemente. Jamais fui tão repudiada por algo que julgo, ainda hoje, como a coisa certa a fazer.
Mas ela foi suja: saiu por aí inventando histórias aos montes. Criando, em sua cabeça, minha figura desmontada. E crescia em mim a vontade de me afogar. Porque, acima de minha liberdade, eu tinha juízes. E a errada da história fui eu. E a menina mentirosa fui eu. E a vencedora fui eu.
E ela rompeu comigo. Graças a Deus. O resto da história não posso contar. Mas há mais nela do que se possa imaginar. Há dois anos tudo isso aconteceu. E, durante esse tempo, adianto a você que ele não passou bem. Apanhou. Chorou. Mas nada aprendeu. Nada. Continua oca, continua sem valor nenhum dentro de si. (oh) A música acabou.
Ela, depois de um tempo, arrumou outro pior que o primeiro. Esse, tenho certeza, será sua lição. Oh, sim. E, hoje, enquanto eu estava esperando meu lanche ficar pronto na lanchonete, ela apareceu em minha frente, e virou o rosto, como eu fiz. Mas na fração de segundos em que meus olhos olharam para os dela, pude ver em sua alma, como ela está machucada. Por mais mal que ela tenha me feito, consegui ouvir o grito de socorro que vinha dentro dela. Eu deveria sentir ódio ou indiferença. Mas tudo o que - me surpreendo eu - tudo o que consegui sentir foi pena.
CLARISSA DAMASCENO MELO

Nenhum comentário:

Postar um comentário