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sábado, 21 de janeiro de 2012

A menina de barro


E se era dia ou noite, não me importa em nada. Acostumei-me a fatos que não se contradizem. As nuvens do céu se espremiam cautelosas, espirrando à terra seca. E a chuva que caía era sugada pela terra com pressa, tamanha era a sede, que a água, a um pequeno contato, se ia embora, enterrada, abaixo das raízes.
E quando se tem um dom, e esse dom nada vale? E quando se tem algo que não é seu? E quando se tem algo que é levado embora? A chuva vem mais forte dessa vez, como uma tormenta doce. A garotinha má estava com as mãos na lama. Disseram-na que banho de lama era bom para a pele. Chovia e ela tinha barro. Era de graça e as outras garotas não mais ririam dela. E a inocência é linda!
E a garotinha ficou lá, abaixo da chuva, acima da terra. Se molhando. Se amando pela primeira vez. Em seus olhos havia um brilho sedutor e covarde. Jamais seus olhos puderam brilhar tanto, em sua cabeça, os risos das crianças malvadas, em seu coração, uma pontada de esperança, e em suas mãos, punhados e punhados de barro vivo, cheio de saliva das nuvens. E ela enchia suas mãos da terra doce, e a jogava a punhaladas no rosto, nos braços, no corpo inteiro.
É que quando mais criança, deixaram cair por sobre a pele fininha e macia, uma grande porção de óleo fervente. A garotinha conheceu a dor e a morte. Mas sobreviveu. E mesmo tão pequena, pensava que se tivesse morrido de dor, não a sentiria tanto como se sentia. Mas não estou falando da dor do corpo, das cicatrizes deixadas pelo óleo, ou muito menos das feridas que eram tão fáceis de se fazer. Estou falando da dor interna, da que faz o coração parar, da que faz chover como chovia o céu.
E quando sentiu-se perfeitamente suja de lama, parou. Sentou-se no chão e chorou. Ela e o céu nunca tiveram uma ligação tão forte como esta. Choraram juntos. Ambos molharam a terra mais uma vez. E aquela cena era linda! Se eu pudesse lavar a garotinha e dizê-la que ela era linda, eu faria milhões de vezes. Mas meu coração chora tanto! E eu não posso pegá-la no colo. 
E saía dela lágrimas tão… tão enormemente delas. Por que lágrima é aquilo que escorre sem querer, e, aos poucos, leva consigo toda a dor incômoda da agonia de ser, sendo. É aquilo que chove de dentro para fora, e de fora para dentro. E era isso que acontecia. Ela estava chovendo inteira.
E passaram as crianças da rua. E assustaram-se ao olhar para ela. E ela permaneceu imóvel. Como todas as outras vezes. As crianças sempre se assustaram com seu rosto deformado, e seu corpo derretido. Mas dessa vez, assustaram-se por vê-la sentada no chão, suja de barro, chorando compulsivamente. 
E antes que a garotinha pudesse pôr suas mãos em seu rosto sujo, dedos firmes foram levantados em sua direção. E a risada escorregava garganta a fora de cada criança má. E gritavam. Gritavam o grito da menina. E então a menina ergueu-se sobre seus joelhos e, em um ato dolorido, espalhou lama para todas elas, correu toda a rua de poças de lama, e chorou mais alto. Tão alto que pôde ser ouvida pelo mundo inteiro.
E a menina entrou em casa aos prantos. Trancou-se no banheiro e lavou-se inteira. Seu coração chorava alto também. A terra escorria do seu corpo e ela pôde ver cada pedaço de seu corpo deformado. Toda a pele morta que a cobrira por um bocado de tempo. E desejou jamais sair do banheiro. E desejou, do fundo do abismo oco de sua alma, jamais ter nascido. E desculpou-se por ainda respirar.
CLARISSA DAMASCENO MELO
2011

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