Páginas

domingo, 22 de janeiro de 2012

O menino que desafiou as flores



Esta história assusta-me como humana. Nela perpassa resquícios de chuva e intranquilidade, pois nela chove não só água - líquido pleno -, mas chovem gotas ásperas capazes de corroer enigmas.
E lá no fundo ainda ouço a voz do menino ardente. Que gritou alto, que perguntou, que falhou, que se aborreceu. Feito o pobre narrador.
Andava o menino sozinho. Dois ou três reais no bolso. Dois ou três é exagero. Ele possuía algumas moedas e um boneco que havia ganhado nos restos do Natal. 
(Oh) Fonte de matéria prima. O menino era uma belezura, como toda criança inocente. Tinha nos olhos o pré-anúncio de vaidade tola. Destas vaidades que se tem e não se sente. Mas nem por isso deixava de ter o azul dos olhos afinados. Reluzia por si só.
E é bondade demais. Vou lhes contar o final antes do fim: Esse menino vai sobreviver. Respirará, aguardem.
E de longe, ambígua, de guarda, o menino viu uma flor. Dessas que namorados dão para suas amadas - se é que existe amor, me permitam.
E boquiaberto com tal fragilidade, aproximou-se de ponta de pé, para não fazer barulho. Quantos anos tinha esse menino? Uns sete ou oito. A pele branca, rosada nas extremidades das boxexas gordas, fazia do menino um ser tão frágil quanto a flor, pois se via ao longe, desenhada em todas as partes do corpo, manifestando-se solene, finas veias recheadas com um líquido doce. Doce e rubro.
Mas e a flor? Ela estava quieta, no seu canto, com suas raízes cravadas no solo seco. Não fora cultivada por ninguém, nem ninguém nunca pensou em plantar outra flor do seu lado, não para gostar dela, mas para estar ali, presa na terra seca, como ela estava. E não seria só ela a sentir toda a dor do mundo. Ela teria alguém para reparti-la, e então a dor seria menor - não em dimensões, mas seria uma dor humana.
Esqueci de mencionar que se tratava de uma rosa. Era uma rosa, rosa. O tom claro de suas pétalas era doce, sincopada. Quem a via pela primeira vez se assustava um pouco com suas pétalas disformes, há quem se encantasse, mas tão raro isso era! E o menino aconchegou-se por perto. A rosa, mal humorada, pôs à vista todos os espinhos que impregnavam seu caule.
-O que quer?- Disse ela tentando fazer com que o menino fosse embora. É sempre assim: quando não se está feliz por dentro, a gente deseja que caia a maior das tempestades nas cabeças dos outros. A gente espera ver nos outros o sofrimento que se sente no nosso interior, para então nos entender. E daí nos decepcionamos.
-Me fala teu nome!- Disse a criança – Me diga seu nome!
-Eu não tenho nome!- Respondeu ela – Sou uma flor, e já que sou flor, meu nome é flor!
-Você não tem nome, mas se chama flor?
-Me deixa!
-Por que?
-Por que não quero ver ninguém!
-Por quê?
-Porque… – Respondeu a rosa – Porque ninguém me deseja, ninguém me adora. Por que eu deveria querer ver alguém?
-Mas você é uma flor… E é tão linda… Coisas bonitas deveriam ser amadas. Você tem amor?
-Amor?
-Sim. Mamãe me disse o que era amor.
-E o que é amor?
-Quando eu fiquei doente, mamãe chorou muito. Isso deve ser amor.
-Pois então – Respirou a rosa impaciente – Eu não tenho amor.
-Mas chove.
-E o que é que tem chover?
-A chuva é um choro que cai do céu. Você deve ter alguém no céu que te ame.
-Sai daqui. Eu não quero ver você.
-Você não pode me machucar. Pois então não saio.
-Eu posso te fazer sentir dor. Todos podem provocar dor. E sentir dor. E chorar de dor.
-Você fala como se sofresse o dia todo.
-Mas você o que sabe disso? É só uma criança mimada que mal sabe o que é amor! Sai daqui! – Gritou a rosa impaciente
Mas a criança, de tão inocente, puxou a flor do solo. Em um só movimento, foi capaz de desprender raiz por raiz do chão. E quando abriu as mãos a flor caiu murcha por sobre o solo, e nas mãos a criança sentiu um ardor estridente. Haviam pequenos furos banhados de sangue. E então a criança pôs-se em prantos. Tonta de dor – dor pequena para gente grande e grande para gente pequena.
E agachado ao lado da flor o menino pôde chorar. E a flor chorou junto por estar morrendo. E baixinho ela disse:
-Obrigado.
-Você me machucou!- Disse o menino aos prantos
-Obrigado.
-Você me furou nas mãos e agora estou sentindo muita dor.
-Obrigado
-Vai ficar me dizendo obrigado? Você me machucou e não vai me dizer nada?
-Um segredo: Vocês possuem dentro do coração algo que, não sei, machuca mais que espinhos. Vocês têm palavras ruins. Vocês têm uns aos outros. Mas, que coisa engraçada! Foi me fazendo mal que você me fez bem. Obrigado.
-Cale a boca!- E engolindo o choro o menino olhava a pobrezinha murchando – Te fiz bem?
-Se eu pudesse te beijar, eu te beijava. Agora não sinto mais nada. Estou e vou ficar bem. Vou morrer. Agora pode ir embora, por favor?
Mas o menino não respondeu. Estava boquiaberto e inanimado no chão. Deus! Eu disse que o menino iria respirar no final. Mas me enganei. O menino era pequeno demais para suportar tamanha dor. E as mãos sangravam. E a cabeça doía. E o menino morrera. E o céu começou a chorar. Lavou a flor que descansara e o menino que fora embora.
E a flor, mesmo morta, sentiu-se pela primeira vez amada. E o menino, morto, não sentia nada. Nem um pequeno pedaço de amor. No bolso ainda se escondiam suas moedas e o boneco. E só isso. Talvez, a única coisa que possuísse vida, fosse esse boneco.
E a chuva caía. E o solo molhou. E as raízes da flor beberam. E as mãos da criança se limparam. Mas flor e menino continuaram mortos. No profundo dilema que se chama vida, se existe morte. E o menino que respiraria, morreu. E a flor que tanto sofria, parou de reclamar. E a chuva lavou o resto de paisagem. E a história acabou.
CLARISSA DAMASCENO MELO

Nenhum comentário:

Postar um comentário