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terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Diamantes


Estava ele lá do outro lado da calçada. As mãozinhas iam no bolso, chacoalhando o vazio frio que havia ali. Os olhinhos se espremiam por causa do sol e sua testa gotejava suor. Mais um dia de vida...
É que quando a noite cai e seu pequeno estômago reclama, ele só encontra farinha seca e água. Sua mãe faz um daqueles pirões e enche o prato de cada um de seus seis filhos. E sua vida era assim, tão triste e tão dele que ele não se conformava.
Quando é cedo, bem cedinho da manhã, antes mesmo do sol nascer, ele já está de pé. Não come nada além de mais farinha e água e sai com seus cinco irmãos avenida a fora, atrás dos turistas amarelos que ele vê e fica bobo.
É que, se ele não conseguir uma boa quantidade de moedas para a sua mãe, é capaz de levar mais bofetadas do que já leva. E tanto ele quanto seus irmãos têm medo das bofetadas de sua mãe. Por que ela é daquele tamanhão de mulher: maior pros lados do que pra cima.
E ele encostou no balcão do acarajé. A baiana negra usava um torço no cabelo e colares coloridos espalhados pescoço a fora. A nuca gotejava suor e o barulho do óleo quente só fazia aumentar o calor que fazia ali dentro. Uma fila enorme de gente querendo provar do acarajé e vatapá da baiana, e ele lá... perdido... querendo só algumas moedas para não apanhar como havia apanhado na noite anterior.
Tomou-se por invisível e deu alguns passos para trás. Encostou em um homenzarrão de orelhas vermelhas. Usava tênis e meia até a canela, bermuda apertada e chapéu de palha. Pensou: Turista. E talvez ali ele encontrasse algumas boas moedas.
Encostou nele e deu uma leve cutucada em seu braço. Não disse uma só palavra à ele que, quando foi olhado, limpando o braço com passadas frenéticas de peito de mão, o turista afastou-se praguejando em um inglês indecifrável.
E murcho o menino se afastou. Olhando o chão barroso, pensando nas pauladas que o aguardavam quando chegasse em casa. E seus olhos já brilhavam úmidos, prevendo a dor que aquilo lhe causava. Comeria pirão aguado e dormiria de fome e de dor. E a vida é mesmo muito bonita!
Quando levantou a cabecinha, avistou uma velhinha de coque na cabeça com umas duas crianças brincando em sua frente. Foi correndo até lá, as mãos em concha quase que tremelicando.
Antes que pudesse abrir a boca, a velha tirou do bolso umas cinco moedinhas de mesmo valor e as jogou nas mãos da criança. E a vida é mesmo muito bonita!
E sorrindo, afasto-se dela com a esperança renovada. Pôde até perceber que o céu estava azul demais e que, se chovesse, não faria mal. Retomado de boa vontade, colocou as moedinhas no bolso e seguiu em frente, como mandavam as grandes estórias.
Foi quando, ao passar de uma esquina a outra, um rapaz o chamou. Foi pulando de felicidade até lá. “Será que ganharei mais?” pensou animado. E, puxa! O cheiro de viver é incrível.
- Diga rapaz!
- Digo! – Respondeu o menininho, as mãozinhas em concha esperando o agrado.
-Diz...- Se riu o moço que flexionou os joelhos para poder olhar o garoto melhor. – Tá quente aqui, vamos andando.- Sugeriu o rapaz
-Vamos – E os dois andavam pela calçada, desviando dos coqueiros. O mar fazia um barulho gostoso e o vento com cheiro de areia molhada invadia os pulmões de ambos com maestria. Era um renascimento.
- O que você faz?
- Sou pedinte, senhor.
- Hm, e o que um pedinte faz?
- Pede.
Houve uma pausa. Enganamos-nos com facilidade absurda, quase que demoníaca. E a vontade de explosão chacoalha. Mas há uma coisa linda: nossa inocência.
- Além de pedir, o que você faz?
- Nada.
- Por quê?
- Por que não tenho tempo.
- Por quê?
- Por que estou pedindo, uai.
- E pedir é ruim ?
- É. Eu sou péssimo. Hoje uma moça velha me deu uns trocadinhos e só. Pelo menos da surra de minha mãe eu me livrei... Mas eu não gosto de ver meus irmãos apanhando, me dói todinho vê-los roxos que nem eu.
- Hm. Sei.
- Sabe?
Houve uma pausa
- Sei que deve ser ruim, uai.
E os dois se riram sem perceber.
E o moço parou e olhou-o um bocado de tempo. Era um menino pobre que tinha uns trocados. Mas o moço também era pobre e não tinha trocado nenhum. Os dois pareciam iguais, mas de tamanhos diferentes. As mesmas mãos vazias, os mesmos pés descalços, os mesmos corações moídos de fome. E a vida canta lindo!
O moço agachou e olhou mais um instante o menino.
-Olhe pra mim! – Disse ele imperial.
-Diga, moço. – O olhar triste da criança era um choro escondido. Um pouco de céu azul que empreteceu de sujo, e estava prestes a chover dentro dos olhinhos negros da criança.
- Você pode enfrentar as maiores chuvas de sua vida. Mas saiba: o céu não vai cair... – Abraçou o menino de leve. Houve um toque de tuque-tuque-tuque. Seus corações tocaram-se e cantaram juntos – Ele vai estar lá, intacto, juntando todas as estrelas para você – As mãos grandes escorregaram dentro do bolso do menino que, de tão feliz pelas palavras bonitas, não pôde perceber esta invasão – E você pode até acreditar que a luta é difícil demais, mas... – Tocou uma moeda dourada. E outra. E outra. E mais uma... – Por dentro, você brilha. Reluz ouro e vibra. Por que, por dentro, somos todos diamantes...- Juntou as moedas em sua mão e levantou-se devagar, para que não fosse descoberto –E é por isso que tudo vai dar certo.
Olhou-o mais uma vez, despedindo-se dos olhinhos frágeis que conhecera. E, antes que pudesse pensar em outra coisa, saiu correndo e rindo. E a vida canta alto.
O menino ficou lá, parado, digerindo palavra por palavra. Mas eram tão difíceis para que ele pudesse entender... que desistiu.
O importante é que agora ele tinha cinco moedas e não levaria bofetadas de sua mãe, certo? Escorregou as mãozinhas abaixo e, ao chegar no fundo do bolso, seu coraçãozinho apertou. Estava vazio! Oh, ele havia sido roubado!?
Tentou correr atrás do moço, mas desistiu. Ele já ia longe...
E a tarde já estava acabando e as pessoas não são tão boas quanto a velhinha. E ele sentiria a força do braço de sua mãe como na noite anterior. E comeria pirão aguado. E dormiria chorando, com lábios torcidos, para levantar-se cedo novamente.
CLARISSA DAMASCENO MELO




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