Estava
ele lá do outro lado da calçada. As mãozinhas iam no bolso, chacoalhando o
vazio frio que havia ali. Os olhinhos se espremiam por causa do sol e sua testa
gotejava suor. Mais um dia de vida...
É
que quando a noite cai e seu pequeno estômago reclama, ele só encontra farinha
seca e água. Sua mãe faz um daqueles pirões e enche o prato de cada um de seus
seis filhos. E sua vida era assim, tão triste e tão dele que ele não se
conformava.
Quando
é cedo, bem cedinho da manhã, antes mesmo do sol nascer, ele já está de pé. Não
come nada além de mais farinha e água e sai com seus cinco irmãos avenida a
fora, atrás dos turistas amarelos que ele vê e fica bobo.
É
que, se ele não conseguir uma boa quantidade de moedas para a sua mãe, é capaz
de levar mais bofetadas do que já leva. E tanto ele quanto seus irmãos têm medo
das bofetadas de sua mãe. Por que ela é daquele tamanhão de mulher: maior pros
lados do que pra cima.
E
ele encostou no balcão do acarajé. A baiana negra usava um torço no cabelo e
colares coloridos espalhados pescoço a fora. A nuca gotejava suor e o barulho
do óleo quente só fazia aumentar o calor que fazia ali dentro. Uma fila enorme
de gente querendo provar do acarajé e vatapá da baiana, e ele lá... perdido...
querendo só algumas moedas para não apanhar como havia apanhado na noite
anterior.
Tomou-se
por invisível e deu alguns passos para trás. Encostou em um homenzarrão de
orelhas vermelhas. Usava tênis e meia até a canela, bermuda apertada e chapéu
de palha. Pensou: Turista. E talvez ali ele encontrasse algumas boas moedas.
Encostou
nele e deu uma leve cutucada em seu braço. Não disse uma só palavra à ele que,
quando foi olhado, limpando o braço com passadas frenéticas de peito de mão, o
turista afastou-se praguejando em um inglês indecifrável.
E
murcho o menino se afastou. Olhando o chão barroso, pensando nas pauladas que o
aguardavam quando chegasse em casa. E seus olhos já brilhavam úmidos, prevendo
a dor que aquilo lhe causava. Comeria pirão aguado e dormiria de fome e de dor.
E a vida é mesmo muito bonita!
Quando
levantou a cabecinha, avistou uma velhinha de coque na cabeça com umas duas
crianças brincando em sua frente. Foi correndo até lá, as mãos em concha quase
que tremelicando.
Antes
que pudesse abrir a boca, a velha tirou do bolso umas cinco moedinhas de mesmo
valor e as jogou nas mãos da criança. E a vida é mesmo muito bonita!
E
sorrindo, afasto-se dela com a esperança renovada. Pôde até perceber que o céu
estava azul demais e que, se chovesse, não faria mal. Retomado de boa vontade,
colocou as moedinhas no bolso e seguiu em frente, como mandavam as grandes
estórias.
Foi
quando, ao passar de uma esquina a outra, um rapaz o chamou. Foi pulando de
felicidade até lá. “Será que ganharei mais?” pensou animado. E, puxa! O cheiro
de viver é incrível.
-
Diga rapaz!
- Digo!
– Respondeu o menininho, as mãozinhas em concha esperando o agrado.
-Diz...-
Se riu o moço que flexionou os joelhos para poder olhar o garoto melhor. – Tá
quente aqui, vamos andando.- Sugeriu o rapaz
-Vamos
– E os dois andavam pela calçada, desviando dos coqueiros. O mar fazia um
barulho gostoso e o vento com cheiro de areia molhada invadia os pulmões de
ambos com maestria. Era um renascimento.
- O
que você faz?
-
Sou pedinte, senhor.
-
Hm, e o que um pedinte faz?
-
Pede.
Houve
uma pausa. Enganamos-nos com facilidade absurda, quase que demoníaca. E a
vontade de explosão chacoalha. Mas há uma coisa linda: nossa inocência.
-
Além de pedir, o que você faz?
-
Nada.
-
Por quê?
-
Por que não tenho tempo.
-
Por quê?
-
Por que estou pedindo, uai.
- E
pedir é ruim ?
- É.
Eu sou péssimo. Hoje uma moça velha me deu uns trocadinhos e só. Pelo menos da
surra de minha mãe eu me livrei... Mas eu não gosto de ver meus irmãos
apanhando, me dói todinho vê-los roxos que nem eu.
- Hm.
Sei.
-
Sabe?
Houve
uma pausa
-
Sei que deve ser ruim, uai.
E os
dois se riram sem perceber.
E o
moço parou e olhou-o um bocado de tempo. Era um menino pobre que tinha uns
trocados. Mas o moço também era pobre e não tinha trocado nenhum. Os dois
pareciam iguais, mas de tamanhos diferentes. As mesmas mãos vazias, os mesmos
pés descalços, os mesmos corações moídos de fome. E a vida canta lindo!
O
moço agachou e olhou mais um instante o menino.
-Olhe
pra mim! – Disse ele imperial.
-Diga,
moço. – O olhar triste da criança era um choro escondido. Um pouco de céu azul
que empreteceu de sujo, e estava prestes a chover dentro dos olhinhos negros da
criança.
-
Você pode enfrentar as maiores chuvas de sua vida. Mas saiba: o céu não vai
cair... – Abraçou o menino de leve. Houve um toque de tuque-tuque-tuque. Seus
corações tocaram-se e cantaram juntos – Ele vai estar lá, intacto, juntando
todas as estrelas para você – As mãos grandes escorregaram dentro do bolso do
menino que, de tão feliz pelas palavras bonitas, não pôde perceber esta invasão
– E você pode até acreditar que a luta é difícil demais, mas... – Tocou uma
moeda dourada. E outra. E outra. E mais uma... – Por dentro, você brilha. Reluz
ouro e vibra. Por que, por dentro, somos todos diamantes...- Juntou as moedas
em sua mão e levantou-se devagar, para que não fosse descoberto –E é por isso
que tudo vai dar certo.
Olhou-o
mais uma vez, despedindo-se dos olhinhos frágeis que conhecera. E, antes que
pudesse pensar em outra coisa, saiu correndo e rindo. E a vida canta alto.
O
menino ficou lá, parado, digerindo palavra por palavra. Mas eram tão difíceis
para que ele pudesse entender... que desistiu.
O
importante é que agora ele tinha cinco moedas e não levaria bofetadas de sua
mãe, certo? Escorregou as mãozinhas abaixo e, ao chegar no fundo do bolso, seu
coraçãozinho apertou. Estava vazio! Oh, ele havia sido roubado!?
Tentou
correr atrás do moço, mas desistiu. Ele já ia longe...
E a
tarde já estava acabando e as pessoas não são tão boas quanto a velhinha. E ele
sentiria a força do braço de sua mãe como na noite anterior. E comeria pirão
aguado. E dormiria chorando, com lábios torcidos, para levantar-se cedo
novamente.
CLARISSA DAMASCENO MELO
Caramba! Adorei esse texto. Realmente algo legal de se ler. Parabéns. ^^
ResponderExcluirObrigada, mesmo
ResponderExcluirTambém gostei bastante.
ResponderExcluirContinue escrevendo!
Um abraço.
Nicolas