Páginas

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Maria não olha.

Fora um dia difícil, daqueles em que a gramática foge das descrições semânticas. Aliás, isso é uma coisa cansativa, feita para escritores obtusos. Que adianta saber como estavam as árvores, o lago extremamente parado ou em fúria, se as ruas estavam movimentadas ou cruas em sua própria nudez? Leitor bom é leitor que só busca as personagens. Os desígnios descritivos da gramática existem somente para povoar páginas extensas e cansativas. Entendam, agora, que acabo de cortar os pulsos ao descrever extensamente uma opinião que me anula quanto ao que escrevo. E o próprio fato de me anular, me torna, também, obtusa.
Ao chegar no ponto de ônibus, olhou as pessoas nos olhos, e notou pedaços de chuva e fúria em cada olhar. O sol acima faiscava, mesmo sendo, aquela hora, o fim do dia. A princípio, as coisas seguiam seu fluxo normal. Acordou. Vestiu as roupas. Saiu de casa. Pegou o transporte. Ouviu grito do Chefe. Fez-se animal. Saiu para o almoço. Curtíssimo almoço. Voltou para seu enjaulamento. E, abro agora, um parêntese.
Faça, leitor, por favor, um parêntese em sua cabeça enquanto as próximas palavras encherem teus olhos. Desenhe um espaço vazio e complete com o que vos direi por liberdade pura. Minha liberdade literária ingere ecstasy.
Eu não consigo entender, e te digo isso com sinceridade, o que as jaulas tem de tão, tão, para andarem cheias. Sabe, as jaulas, os escritórios cheios. As pessoas bebericam cafezinho naqueles copinhos plásticos enquanto os pés batucam o elevado chão. No entanto, elas não sabem que elas próprias são o plástico que formata o copo. Elas são plásticos programáveis. Isso é patológico!
Eis que ela estava ali -, e agora, leitor, feche os parênteses - inerte em pensamentos doidos. O que fazer para jantar? As crianças, as crianças estão bem? O marido, Ah, fulano! Onde estaria? Não lhe mandara mais mensagens, nem telefonemas, nem respondia às múltiplas cartas. Até que desistiu de reencontrá-lo. Chega uma hora, ah, chega uma hora em que é preciso calar as verdades em si e seguir no mundo sem a outra pessoa. A adjacência que é intransitiva é uma coisa dolorosa.
Os carros passavam arrancando pedaços de ar, deixando, para trás, um vácuo tão veloz quanto sua própria vida. Mulher cansada, anexada ao viver de sobrevivência própria. Ela, ela e os filhos. Dois. E o mundo acabara. Até que todos os teus pensamentos foram cortados quando viu seu ônibus, em escala de cinza, aproximar-se. Um bolo humano formou-se à porta enquanto ela, com olhos cansados, via as formigas empurrarem-se furiosas. "Deus do céu..." Pensou. E se Deus, em Sua soberania, ouvisse o teu chamado mudo, assustar-se-ia com tanta estupidez.
Até que finalmente, com passadas curtas por entre as pernas doidas, achou lugar para sentar. Seria uma viajem longa. Eu tenho, também, umas coisas absurdas para dizer sobre viagens longas. Mas, não, não vou dizer. Agora não. Não quero, leitor, que se sinta tentado a parar o texto antes mesmo do texto começar. Crê? Escrevi tanto e a estória nem começou. Pois eu mesma, que sou narradora-opcional, já estou com os olhos ardendo só de imaginar continuar a escrever. Mas começo coisas e, como tal, preciso fazer com que as coisas acabem. Paciência, comigo, leitor, você tem?
E quando perdeu-se em sono lento, ouviu o espirrar de calma rara. Os batimentos cardíacos, regulares, transpassavam o ritmo lento-azul em que a personagem principal fora abduzida. Então, um choro de criança.   Daqueles em que se ouve em casas de mães recentes. A criança devia ter seus três anos e já era capaz de ensurdecer metade do ônibus. Lá se fora o descanso prévio de nossa personagem, perdão.
Até que mãe e criança andaram até o meio do ônibus. Pararam jocosos e quase-mudos sem achar lugar. De pé, equilibrada sobre dois pés de onça, a mãe segurou firma a mão pequena do seu. Era um menino lindo. A personagem olhou os dois e pensou se teria aquela força toda para andar com seus filhos. Não, certamente não. Não que não gostasse deles, mas é que quando os ouvia chorar, deixava-os sozinhos até que estivessem calmos. Método inventado por ela mesma, que não tinha paciência alguma. Sua vida era o escritório. E ter duas vidas não é talento de muita gente.
Relaxou na cadeira e estava quase que totalmente de corpo amolecido, se não fosse a senhora do lado fazendo barulho de ruminação, dormiria feito antes. A criança chorou de novo e ela olhou os olhinhos vazando água. "Coisa nenhuma, uns bons tapas acalmariam a boca do pirralho...." Pensou, pensou e só pensou. Continuaria pensando se não fosse interrompida pela voz materna que dizia:
-Pode carregar meu filho para mim? Ele fica enjoado quando entra em ônibus e não quero que ele fique...
-QUÊ?!
-Por favor -, repetiu quase num sussurro
Suspirou longamente até ver-se dizendo "Sim"
A criança era macia. Confirmação maior para se dizer que criança nenhuma é oca. Ocos são os olhos de quem nega a maldade própria. E, sentado, o menininho olhou a personagem nossa com doçura. Era uma moça diferente. Tinha rugas. A pele era clara, mas estava com manchas vermelhas de sol. A boca tremia e aquilo era engraçado. Nenhum sorriso, somente seriedade. A moça, embaçada pela timidez, desviou o olhar e a criança não pôde analisar teus olhos. Uma pena. Pois, leitor, não há nada que estampe tudo tão bem quanto teus olhos. Se se enrugam pelos cantos, estás a sorrir. E isso é bom. Se vazam, então tu choras. Que também é bom. Pois se tu choras, leitor, é sinal de que tens coração e alma. Então tens tudo.
O ônibus seguia esquina por esquina, parava para colocar mais gente para dentro, então tornava a seguir. As janelas, fechadas, não impediam a criança de olhar os prédios entortarem-se em vento. E sorria. Escandalava. A personagem olhava, de quando em vez, para isso e escondia a rizada, que saía abafada pelo nariz. "Que tolice..." A mãe do menino ia agarrada ao lado, sorrindo forçosamente. Não de orgulho, mas era uma força também cansada. Culpa do sistema. Mas não sou eu quem apedrejaria o sistema. Ele existe e só. Eu apedrejo quem, cegamente, faz parte dele e edifica-se por ele. Seus mundos cinzas me enojam.
O colo de Maria ficou vazio quando a mãe da criança a puxou para descer. Maria sentiu-se inerte e compadecida. "Mas já...?" A pele macia do menininho haveria de ir-se embora e Maria não o tocaria nunca mais. Silêncio.
- Vamos, pequeno! - Disse-lhe a mãe, paciente.
Pequeno, em seus próprios pés, uniu força e edificou-se até alcançar o rosto de Maria. Então, beijou-lhe a bochecha flácida.
- Tchau, moça bonita! - Disse-lhe com acenos de mão frenéticos.
Sua mãe esticou-lhe o braço e saiu do ônibus com ele no colo.
Maria não olhou para trás.

CLARISSA DAMASCENO MELO

Um comentário: