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terça-feira, 2 de outubro de 2012

Sina.

Esperou que todos acabassem de subir no ônibus. Recostada no poste austero, tinha mãos e dignidade enfiadas nos bolsos traseiros de sua calça jeans surrada. Eis mais um dia de sua vida! Depois que o último pé passou pela porta do coletivo, ela entrou no ônibus. Cobrador e motorista entreolharam-se com suspiros múltiplos. Depois de certificar-se que todos estavam sentados em suas poltronas, começou a dizer sua ladainha:
-Bom dia gente! - Ninguém lhe deu resposta, mas, continuou. -Eu não estaria aqui, fazendo com que vocês percam tempo precioso à toa. É difícil subir aqui desse jeito pra falar com tanta gente que nem para para nos ouvir. Mas, a minha mãe, recentemente,  sofreu ataque do coração e faleceu. Somos somente eu e minha menina. 
Observou, de canto de olho, que uma senhora já estava mexendo na bolsa. Com tantos anos fazendo a mesma coisa, aprendeu que gente fina não espera o texto decorado se concluir, catam logo as moedas que acham pela frente e as jogam nas mãos daqueles que pedem. Ou por bondade, ou pela vontade incontrolável de vê-los calando a boca o mais breve possível. Continuou:
- A minha menina tem seis anos de idade e, nessa semana fez dois anos que só consegue comer por uma sonda. Não abre a boca mais para nada. Foi por causa de uma doença que ela teve quando nova. Seu alimento custa noventa e quatro reais e eu...
E então mais gente se levantou de suas cadeiras para dar-lhe algumas moedas. Ela estendia o braço além da  roleta para alcançar as mãos que se mantinham mais afastadas, e murmurava, entre as palavras de seu texto decorado, um "Deus abençoe" quase inaudível. 
- ... É por isso que estou aqui pessoal, pois esse tipo de comida, que é especial para ela, duram somente duas semanas. Eu não tenho como pagar o tratamento e, se hoje estou aqui, incomodando cada um de vocês, é porque sou mãe. E mãe não sente vergonha de sua filha doente, não é mesmo? Eu acho que...
O cobrador buzinou, como quem avisasse que já estava na hora de partir. Entendendo o recado, ela disse: 
- Deus abençoe cada um de vocês, que ajudaram ou não. Tchau pessoal.
Desceu do ônibus e viu este se afastar, igual a tantos outros. Contou as moedas das mãos e dos bolsos, juntou com as que havia conseguido logo cedo de manhã. "Vinte reais", disse a si. "Vinte reais", repetiu. 
Atravessou a rua e entregou, moeda por moeda, ao rapaz que lhe observava cada vez que cumpria sua sina. Este, olhou-a de lado enquanto contava as moedas jogadas em suas mãos.
Este rapaz lhe fornecia drogas todos os dias.

CLARISSA DAMASCENO MELO

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