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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Balinha de maçã

nota: recriação do texto "balas"
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Horas passavam sem que se mudasse o tempo. E cada pedaço desse pouco tempo era um pedaço de céu arrebentado. E o tempo se congelava e se derretia sem que as previsões alarmassem. Esse era um novo tempo. Dele, só dele.
Ele que gostava de correr... Estava correndo. Em velocidade máxima, puxando todo o ar que cabia em seus pulmões e soltando como se fosse a última vez que pudesse fazer isso. Ele corria, não com pernas, mas de mãos dadas, de braços inertes, de costas coladas no lençol, de suor no rosto, de dor no peito. Correr ele corria, contra o tempo. E quanto tempo faltava, ele não sabia. Só sabia que faltava tempo para...  a natureza agir.
De qualquer maneira, preferia ter sua alma solta ou presa nas nuvens, ou em um céu de estrelas. Tão limpas e tão brilhantes que ele desejaria explodir com elas. E ele correria para estar lá. Mas não hoje. Nem que se precisasse suar o dobro, ou doer o dobro, hoje ele só queria apertar a mão de sua mãe mais forte e mais forte até que pudesse sentir seu sangue aquecido. Por que até o calor fugiu dele. E a vida dele pulsava suas últimas horas. Horas dele, só dele.
Doente, seu cabelo caíra com o tratamento que o deixava enjoado. Quando a família soube, choraram todos juntos. E toda a força e toda a fé e toda... É um muro de pedra cinza, veluda e forte. E a maciez dos dias em que viveu tornou-se rígida. Ele acordava e dormia sentindo falta de Deus. E Deus estava lá, escondido entre as nuvens, comandando rebeliões e revoluções tão nossas, e tão dele.
E por todo o universo, as únicas estrelas que brilham um dia tiveram de morrer. Só não sei se a morte brilha. Mas é verdade, se explode para que o brilho seja intenso. E uma cascata de nuvem prata talvez perpasse por nossos olhos e os feixe devagarzinho até que... até que se possa brilhar.
Orações sem fé não se podem agarrar a carne crua e imóvel. E suas orações tinham poder mágico. Mas ele não acreditava em magia, nem no amor do mundo por ele. Velhos amigos sumiram... aqueles da faculdade, que estudavam com ele, e viajavam com ele, e dançavam com ele... Ele foi capaz de esquecer todos os seus rostos. Menos de uns dois ou três.
Agarrado ali, na sua mãe, puxando forças esgotadas e arrepios de carne, olhou pro dia lá fora pela janela: é verdade... estava coagulado! Estava feito uma gelatina em cima daquela cama. Do jeito de uma criança que fora proibida de sair. Ele seria uma boa criança se conseguisse se levantar. Mas, se levantasse, não ficaria de pé. Nem suas pernas se mexiam.
Piscou suas pálpebras arroxeadas para a mãe. E toda mãe é capaz de ouvir o coração gritar desanimado. Ela levantou-se, soltando dedo por dedo de seu filho com a maior cautela do mundo. Abriu a bolsa e elas estavam lá, pequenas balinhas de maçã verde. Abriu uma e, com igual cautela, a pôs na boca de seu filho.
Sentindo a saliva adocicada escorrer por sua boca, sentiu o salgado daquele momento se amenizar. Ele sorriu tranqüilo e brilhante. Era isso que ele queria: ter uma mortezinha doce. Tão doce como aquela. Sorriu mais umas três vezes para a sua mãe, e então o véu de prata pareceu fechar-lhe os olhos. Talvez agora ele pudesse escalar as nuvens e de lá explodir, como uma estrela que morre, e que brilha e que é vista daqui da Terra.
 CLARISSA DAMASCENO MELO

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