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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A vida continua

Antes de começar a escrever sobre o que não se escreve, tenho um segredo pra contar: eu morri. É, estou mortinha e não me lembro como que aconteceu. Só fiz morrer. E dou risada por que vivi a vida toda achando que morrer dói. Não dói. Viver é que dói.
E antes que eu possa contar a minha descoberta, terei que falar um pouco de como foi viver a morte-vida. Veja bem: quando vivos, idealizamos o futuro fortemente. Os futuros longos, sem pausa. Só que futuros longos sempre chegam, a gente é que não vê. E quando eu morri minha morte eu senti que o futuro sempre esteve só um passo a frente... Mas, ao dar cada passo, eu caminhava de olhos fechados.
E eu poderia fazer dessa morte uns daqueles contos de susto. Ou poderia contar sobre as luzes que se apagaram com velocidade abrupta. Ou simplesmente dizer tudo o que eu senti antes de minha morte. Mas não quero. Eu-não-quero. Na verdade, não se pode. Depois que você morrer você vai descobrir tudo. Eu não devo estragar esta tua surpresa que virá mesmo se os tempos mudarem. Pois está aqui uma outra verdadezinha que escorregou: mesmo se descobrirem a cura da AIDS, ou uma vacina contra o câncer, ou um jeito de aniquilar todo mal do mundo... ninguém nunca vai descobrir um jeito de não morrer. Por que morrer é tão natural quanto viver parece ser.
E se você, leitor, soubesse como morrer é... Pararia de lutar por tanta coisa material. Por que é isso que se faz: se enfia olhos e vida dentro dos livros gelados para que se consiga emprego. E o emprego é quem congela. Mas o que é inércia se no final do mês se tem salário gordo? Mas depois você morre... e depois que você morre... Você descobre que todas essas coisas nunca te serviram para nada, por que todas essas coisas não podem estar dentro de sua alma. E o que não entra na alma não pode ser prioridade.
Pois bem leitor, eu poderia dizer que o mundo dos mortos é uma fumaça branca cheia de espectros. Mas... não farei descrições. Até por que... Descrições não servem pra nada, nem mesmo para descrever.
E depois de um tempo, andando pelos lugares irreconhecíveis, quis voltar à minha cidade, rever meus amigos, meus familiares... Saber como as coisas ficaram depois que tudo aconteceu. Se eles têm fotos minha pela sala, ou se guardam minhas roupas... Ou, ainda, se me sentiriam por perto.
Mas a única parte dolorida de minha volta foi essa: quando entrei em minha casa, todos estavam reunidos. Comiam o bolo da vovó e sorriam alto. Eles deveriam estar tristes... não deveriam?
Dei uma olhada pela sala e me assustei: nem se quer uma foto minha estava lá. Todas aquelas de sorrisos largos, com namorado do lado, de vestidinho florido... todas estavam guardadas cheias de pó em uma gaveta do meu antigo quarto. Aliás, antigo mesmo. Nunca mais ninguém entrou lá.
Sentei do lado de minha mãezinha e ela não pôde me ouvir. Passei minhas mãos em seus cabelos e ela nada sentiu. Eu disse baixinho em seu ouvido: mãe, te amo... Mas ela não me respondeu.
Eu quis sentir o sabor do bolo da vovó mais uma vez... mas não pude. E então eu descobri sem querer que eu estava sentindo dor. Aquela dor aguda que grita e que canta e que nos suga. Ninguém sentia saudade.
E então, sem fechar a porta ou dizer adeus, voltei pras ruas, com cabeça baixa, mãos cruzadas e agonia que me cortava. Ninguém sentia saudade...
E quando cheguei na esquina, pude ver meu antigo ônibus escolar... O que eu usava pra voltar da escola me queixando de dor. Mais adiante, vi a biblioteca cheia de gente. Do jeito que eu adorava ver! E, mais adiante, a minha primeira escola batia o horário do recreio. E o sabor da infância encheu minha boca.
E depois de ver que tudo estava no lugar, e perceber que a vida era tão normal com ou sem minha presença, pude me ver sumindo em cima da calçada. Me vi sumir de vez...
E, talvez por ironia, alguém soprou em meu ouvido direito:
- A vida continua.

CLARISSA DAMASCENO MELO


2 comentários:

  1. Parabéns... e obrigado por criar esse blog e compartilhar a beleza da sua alma, as cores do seu mundo e o talento em juntar frases e fazer mágica!

    Keep Shinin' ...

    Paz, coragem e inspiração.

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