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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Reza.

Fazia dias que se arrepiava sem querer. E era uma coisa doida, como se a vida estivesse, a todo o tempo, te avisando de alguma coisa ou alguém que se aproximava. E, quando dormia, sentia o pescoço enrijecer-se e contrair-se de forma dolorida. Os olhos, miúdos e assustados, apertavam-se quando proferia a prece: valha-me Deus!  E passava a noite acordada, sonhando suas pequenas orações sobre o futuro. Gostava de pensar... E só pensar dava à ela a ilusão de ser uma no mundo.
Até que, em teus sonhos, enquanto os sonhava de olhos fechados, via-se afogada em marés abertas, ou nadando contra as muitas violentas ondas que lhe entravam garganta à dentro. E acordava sobressaltada, com o coração posto na boca, impiedosamente rápido. E gritava. Durante as noites enegrecidas em teu quarto, passou a ouvir vozes. Tapava os ouvidos com os travesseiros, enquanto as pernas golpeavam o ar. Inútil. Vozes não vão embora.
"Isso só pode ser doidice de tua cabeça cheia de vento, moleca!" Disse-lhe a tia, impaciente.
"É stress... há de sumir logo, logo..." Dizia-lhe a vizinha que ouvia teus gritos à noite.
"É o diabo que atormenta gente herege" Disse-lhe a mulher crente de saião nos pés "Ou tu se arrependes dos teus pecados, ou ele vai continuar gritando com você todas as noites..."
Mas ninguém dizia-lhe o que ela queria ouvir, talvez seja porque nem mesmo ela sabia o que queria ouvir. E, enquanto diziam-na o que fazer, não fazia nada. Passava o dia com os pensamentos na noite; e à noite, pensava no dia e desejava que este nascesse logo. Era uma vida miserável, de medo, de pavor.
Chegou a deixar as luzes acesas, na tentativa vã de espantar qualquer criatura maligna. Comprou incensos de todas as ervas que conhecia e, enquanto a fumaça se espalhava pelo quarto, sua garganta enchia-se de pó, então passou a ter problemas nos pulmões.
"Vá em uma rezadeira... Em uma que seja forte e que não te cobre nada. Rezadeiras que cobram são picaretas." Disse-lhe uma amiga "Eu já passei por coisa parecida, e Dona Eulásia foi quem me tirou da dor."
Anotou o endereço de Dona Eulásia no fundo da agenda, e, em meio ao suor da testa e ao batuque do coração, decidiu que tentaria mais uma vez.  E foi tentar. Chamou o pai. Não poderia seguir rumo à tua cura sozinha. E esperava que realmente fosse tua cura.
Montaram, os dois, na moto e seguiram viagem. Enquanto a máquina corria, orava baixinho suas preces decoradas na catequese. Finalmente serviram para alguma coisa! Até que seu pai freou na frente de um casebre amarelo, parecia ter sido pintado com tinta guache. Desceram da moto, o chão de lama formava um caminho curto entre eles e a velha rezadeira. Ela entrou olhando os pequenos pés de ervas - as ervas dos incensos de seus pulmões. E disse: valha-me Deus Pai de Todo o Poder!
"Entre filha" - Disse a velha, sentada em uma cadeira de plástico. Os olhos, inchados de tempo, lacrimejava um líquido esbranquiçado, e eram claros feito o mar. O mar que afogava gente. A pele enrugada era incrivelmente brilhante. Fosse suor, fosse natureza, era bonita de se ver.
Ela sentou n'outra cadeira de plástico e observou a velha indicar a porta da casa para que seu pai saísse. Ele obedeceu.
"Feche os olhos" Ordenou a velha, com um ramo de folhas nas mãos. "Feche os olhos por que a oração só pode entrar pelos ouvidos. Deixe aberto o coração."
Então, fechou os olhos.
E, por um momento, teve paz.
Sentiu as folhas molhadas tocar-lhe o rosto e os braços, enquanto a velha proferia oração à São Jorge. E achou aquilo a coisa mais linda do mundo. Ouvia a tudo enquanto sentia os arrepios costumeiros invadir-lhe o corpo. Estava renascendo. A reza era livre, e ela podia ouvir. Sentiu nos braços um pouco do peso do mundo. Abriu os olhos para percorrer a casa. Era pobre, pobre demais. Quadros na parede com imagens de santos estavam sem cor, de tempo. Uma mesa de madeira com uma toalha de tricô. E só. Paredes nuas.
"Feche os olhos" Ordenou-lhe a velha. " Vamos filha, ajude."
Fechou os olhos e esqueceu do mundo.
Viajou.
"Tá com Ar de Morto."
"Hm?"
"Ar de Morto. Vai precisar de uns banhos, e de mais reza."
Ar de... que? "Crendeuspai"; pensou, e, no auge de sua estranheza, interrompeu as orações e levantou-se.
"Muito obrigada..."
Atravessou a porta e foi embora. Ficou em silêncio enquanto subia na moto.
"Como foi?" Perguntou-lhe o pai.
"Bobagem pura." Respondeu.
Voltou pra casa para esperar a noite, o medo e o pavor.


CLARISSA DAMASCENO MELO

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