Páginas

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Borrar batom.


O tocador de piano ficará no canto da sala, com olhos entreabertos, para ver somente metade da história passar. E, enquanto os seus dedos enrugados perpassarem por todos os cantos do piano, cuspindo as notas musicais; os personagens, em cena, não notarão presença, nem de pianista, nem de música.
E enquanto a menina passar batom, e o rapaz, ensaiar suas falas românticas; a música será singela e doce, com certo ar de misticismo e emoção. Vai se tratar de um momento prévio, em que cujos corações se conhecem, mas jamais se tocaram. A música lenta serve para enlaçar aquele momento em que não se sabe amar, amando. O saber, amor, de amor, sem sentir.
E, enquanto a menina ouvir as palavras decoradas, e sorri timidamente para o rapaz corado, a música vai batucar. Batucará dentro e fora de ambos os corpos, que estremecerão de emoção aguda, enquanto os corações, gentis e inocentes, morrerão de pouco a pouco, de bater por contra o peito na vontade de se corar por fora também.
E, enquanto o rapaz, rubro de vergonha de si, beijar a mão suave da menina de bico vermelho, os seus olhos se fecharão diante do amor, que, tamanha é sua grandiosidade, que já não caberá em palavras decoradas, nem nos corações de ambos. E, quando sentir a saliva adocicada descer-lhe a mão veluda, a menina sorrirá e dirá: também te amo. E amo demais.
Mas o pianista, tanto quanto o amor, é confuso e sóbrio. E, quando vir tamanho sentimento diante de si, tratará de fazer seus dedos enrugados agirem mais rápido. E a música passará de suave e doce, para um som amargo, de dor e fúria, feito um animal ferido. Grunhindo, entre as teclas do piano, o som será amargo e infeliz. E, as mãos veludas da menina se enrugarão também. Será a própria mão do pianista.
O rapaz esquecerá as palavras decoradas, e não mais as dirá. E se revoltará ao tomar a mão da amada, que, de tão enrugada, passará a incomodar seus lábios que, embora não saibam mais as palavras bonitas, sabem ainda o que é belo, e a desejar o belo. Franzindo sua testa, se afastará em breve. E, enquanto a música tocar suas últimas passadas de ódio, suas passadas encontrarão a porta de saída.
A menina, emudecida, ficará na sala, na companhia da música agridoce. E chorará por nem ter borrado o batom.

CLARISSA DAMASCENO MELO

2 comentários:

  1. CARAMBA, CLARISSA...ESTA AQUI É PRA DAR ARREPIOS DE TÃO SOFRIDA.....MUITO BOA MESMO!!!! PARABÉNS!!!

    ResponderExcluir