Páginas

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Cantar de Galo.

Eram seis e meia da manhã.
Saiu de casa assim que o galo que dormia na cozinha cantou.
Coitado. Mal sabia que era seu último cantar.
Ou talvez soubesse e por isso fez questão de cantar mais alto.
Jogou umas roupas na sacola.
Saiu pisando fino por cima da calçada.
Era hoje, ou nunca mais.
Disseram que, se cedo fosse, capaz de começar a trabalhar na próxima semana.
Entrou no ônibus.
Sentou-se na primeira cadeira vazia.
Ali, começou a idealizar-se após aquele dia:
Ela pagaria o tratamento mental de seu filho caçula.
Compraria a boneca cor de rosa para a sua filha do meio.
Traria chocolate para o filho que andava sempre gripado.
Sandálias novas para o que mantinha os pés no chão gelado.
Pastel para a mãe que nem sequer andava.
Óculos novos para o marido desempregado.
Um sofá.
Uma geladeira.
Almofadas.
Duas camas.
Uma para ela e ele.
 Outra para as crianças.
A mãe poderia continuar dormindo na cadeira de rodas.
Tintura para a casa.
Brincos novos.
E piiiiii piiiiii piiiiiii.
Eis que, de gota a gota,
o soro descia-lhe veia à dentro.
As pálpebras arroxeadas foram se fechando aos poucos.
De-va-gar.
E seu filho caçula continuaria maluco.
A sua filha do meio, sem boneca cor de rosa.
O filho gripado, sem chocolate.
O chão gelado ainda seria do menino descalço.
Sua mãe, sem pastel.
Seu marido, sem óculos.
Nenhum sofá.
Nenhuma geladeira.
Nenhuma almofada.
Nenhuma cama.
Somente a cadeira de rodas – ocupada.
Sem tintura. Sem brincos.
E o galo - que morreria - fez questão de cantar ao entardecer.
Pois talvez soubesse ele que morrer é dom de raros.
Do sonho sobrou somente uma notícia na rádio,
a voz enferrujada:
Ônibus vira na estrada. Ninguém sobreviveu.


CLARISSA MELO

Nenhum comentário:

Postar um comentário